TOM SAWYER



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TOM SAWYER

A modern-day warrior
Mean mean stride
Today's Tom Sawyer
Mean mean pride

Though his mind is not for rent
Don't put him down as arrogant
His reserve, a quiet defence
Riding out the day's events -
The river

What you say about his company
Is what you say about society
- Catch the mist - Catch the myth
- Catch the mystery - Catch the drift

The world is, the world is
Love and life are deep
Maybe as his skies are wide

Today's Tom Sawyer
He gets high on you
And the space he invades
He gets by on you

No, his mind is not for rent
To any god or government.
Always hopeful, yet discontent
He knows changes aren't permanent -
But change is

What you say about his company
Is what you say about society
- Catch the witness - Catch the wit
- Catch the spirit - Catch the spit

The world is, the world is
Love and life are deep
Maybe as his eyes are wide

Exit the warrior
Today's Tom Sawyer
He gets high on you
And the energy you trade
He gets right on to
The friction of the day
TOM SAWYER

Um guerreiro contemporâneo
Que expressa avanço
O Tom Sawyer de hoje
Expressa orgulho

Embora sua mente não esteja à venda
Não o tire como arrogante
Sua reserva, uma defesa quieta
Que supera os eventos do dia -
O rio

O que você diz sobre a sua companhia
É o que você diz sobre a sociedade
- Pegue a névoa - Pegue o mito
- Pegue o mistério - Pegue a correnteza

O mundo é, o mundo está
Amor e vida são profundos
Talvez tanto quanto seus céus são amplos

O Tom Sawyer de hoje
Passa por cima de você
E o espaço que ele invade
Ele toma de você

Não, sua mente não está à venda
Para nenhum deus ou governo.
Sempre esperançoso, embora descontente
Ele sabe que as mudanças não são permanentes -
Mas mudar é

O que você diz sobre sua companhia
É o que você diz sobre a sociedade
- Pegue a testemunha - Pegue o juízo
- Pegue o espírito - Pegue a saliva

O mundo é, o mundo está
Amor e vida são profundos
Talvez tanto quanto seus olhos são amplos

Sai o guerreiro
O Tom Sawyer de hoje
Passa por cima de você
E a energia que você produz
Ele consegue bem
Na fricção do dia


Música por Geddy Lee e Alex Lifeson / Letra por Neil Peart e Pye Dubois


Um indivíduo independente que preserva sua autenticidade

A primeira faixa (ou cena) de Moving Pictures se tornou certamente a composição mais popular do Rush em toda a carreira. Rebelde, pulsante e ao mesmo tempo poética, "Tom Sawyer" se consolidou como um grande hino definitivo do power-trio em todo o mundo. No Brasil, trouxe grande notoriedade para a banda por ter sido escolhida como trilha de abertura da famosa série de TV Profissão Perigo, exibida na Rede Globo pela primeira vez em 1986. O protagonista, Angus MacGyver (interpretado pelo ator norte-americano Richard Dean Anderson), era um agente secreto que não utilizava armas, resolvendo seus problemas a partir de conhecimentos científicos, materiais comuns e um canivete suíço que sempre carregava. A abertura brasileira utilizava um pequeno trecho de "Tom Sawyer", como uma alternativa ao tema original do maestro Randy Edelman.

"...Nos contaram uma vez que 'Tom Sawyer' foi utilizada na televisão brasileira como tema de abertura para 'MacGyver'", lembra Neil Peart. "Nós dissemos, 'O quê!?'".

Moving Pictures, que apresenta de início e novamente a representação de um indivíduo contra as regras, é construído primorosamente com elementos certeiros do rock, da new wave e até mesmo do reggae, e "Tom Sawyer" sintetiza tudo o que representava o Rush à essa altura: riffs de guitarra poderosos, sintetizadores impecáveis, linhas de bateria e baixo incríveis e muita ousadia.

Definitivamente, "Tom Sawyer" é uma canção que se mostrou fundamental para o desenvolvimento da banda. Geddy Lee a classificou em uma ocasião como "uma obra musical definitiva" do Rush. Para a maior parte da década em que nasceu, os teclados e efeitos passariam a exercer um papel cada vez mais importante nas criações do grupo. "Há um frescor nesse som que ainda se destaca", diz Lifeson, com orgulho. "Além disso, há algo na letra com o qual as pessoas sempre se relacionam com muita força – o espirito de independência e aventura. Trata-se de uma daquelas canções especiais". Mesmo reconhecida por seu inegável sucesso e classificada pelos próprios músicos como a música da banda por excelência, ela assinala perfeitamente a transição que o Rush experimentava no período. Com investidas marcantes de sintetizadores construindo o pano de fundo, o som do trio se tornava ainda mais profundo, denso e complexo, sempre assinado por performances instrumentais absolutamente geniais.

Era o alto verão no intervalo em que Geddy, Alex e Neil se reuniram para compor as canções que dariam vida ao disco. Porém, no momento em que as gravações tiveram início no Le Studio em Morin Heights, Quebec – o mesmo refúgio nas montanhas no qual a banda havia concebido Permanent Waves no ano anterior - o rigoroso inverno canadense já havia se estabelecido. "Foi o mais frio que experimentei na minha vida, e isso é certo!", ri Lifeson.

"Ficamos instalados em uma casa ao lado do lago, e o estúdio era na outra extremidade", continua o guitarrista. "Quando estávamos com coragem o suficiente, caminhávamos pela floresta. Era muito bonito, mas fazia menos quarenta graus lá fora, é serio! O vídeo promocional de 'Tom Sawyer' tem início com uma visão dessa paisagem coberta de neve, e termina mostrando o lago congelado".

O Rush, de maneira inédita, foi convidado em 1980 por uma banda de amigos de Sarnia (Ontário), Max Webster (com a qual saíam em turnê desde 2112), para gravarem uma canção juntos. Dessa união nasceu "Battle Scar", que se tornou a quinta faixa do álbum de estúdio lançado pelo Webster no mesmo ano, Universal Juveniles. Essa conexão fez com que o Rush se aproximasse do letrista oficial deles, Pye Dubois, que também era poeta e que rapidamente simpatizou com a personalidade aguçada e peculiar de Peart. Dubois ofereceu ao baterista um poema chamado "Louis The Lawyer" (por vezes citado como "Louis the Warrior") para colaborar em uma possível canção, o que seria apenas a primeira de um total de quatro parcerias. A obra era inspirada no famoso livro infanto juvenil do escritor norte-americano Mark Twain (1835 - 1910), As Aventuras de Tom Sawyer (1876), o qual todos os três integrantes do Rush conheciam desde os tempos de escola. Na história, Thomas 'Tom' Sawyer é um garoto atrevido de doze anos que vive numa pequena cidade às margens do rio Mississipi, Estados Unidos. Certa noite, ele e seu amigo Huckleberry Finn testemunham um crime brutal no cemitério local. Os meninos fogem apavorados e juram nunca revelar a identidade do assassino, pois temem pela própria vida. No entanto a culpa recai sobre um inocente, e Tom e Huck são os únicos que podem evitar a injustiça livrando o acusado da forca. Paralelamente a esse dilema, os dois jovens vivem incríveis aventuras em busca de um tesouro perdido. Peart, em particular, identificava-se com os temas centrais explorados, como a rebeldia e a independência, tendo em vista que de "Anthem", de Fly By Night (1975) à "Freewill", do anterior Permanent Waves (1980), a importância da individualidade era um tema recorrente.

"Uma intensa tempestade caía lá fora durante todo o dia, e lá dentro acontecia um tipo de tempestade diferente", lembra Peart. "Nos estúdios Phase One, dois sets estavam montados na sala e duas bandas preenchiam o ar com um tumulto Wagneriano, pois estávamos gravando com o Max Webster uma música para seu novo álbum, chamada 'Battle Scar'. Foi uma experiência única e agradável participar de algo dessa magnitude, e acho que o resultado irá refletir o sucesso. Também nesse dia, tivemos a oportunidade de ganhar uma canção própria de Pye Dubois (letrista do Max Webster), que sugeriu humildemente que a mesma poderia servir para nós, se nos interessasse. Sendo admiradores de longa data do trabalho de Pye, ficamos interessados, e isso acabou eventualmente se tornando 'Tom Sawyer'. É interessante como uma identificável influência do Max Webster apareceu na música, pela letra do Pye".

"Esses caras eram grandes amigos nossos"
, lembra Lifeson sobre o Max Webster. "Mas Pye era um pouco misterioso – um sujeito estranho! Ele era muito peculiar, um pouco louco, mas escrevia boas letras".

Nas palavras de Peart, Dubois criou com "Louis The Warrior" "um guerreiro dos dias modernos". O baterista aceitou o material, retrabalhando-o, expandindo e transformando-o na letra de "Tom Sawyer", a canção que abriria Moving Pictures.

"Não gosto de pensar sobre a sequência de um álbum até terminarmos de gravar tudo, mas sempre achei que 'Tom Sawyer' seria a abertura nesse caso", lembra Lifeson. "Pela forma que começa, ela tinha que abrir o disco. Foi um arranjo refrescante".

"Neil trabalhou na letra a partir de uma ideia que veio de um amigo nosso, Pye Dubois"
, continua. "Ele levou a ideia massageando-a, retirando algumas linhas de Pye e somando algumas suas, expandindo o tema em torno da rebelião e do instinto. A gravação foi bastante simples, muito confortável como grupo. O solo de guitarra é bastante peculiar, mas acho que não levou muito tempo para ser feito, talvez cinco ou seis takes. Não gosto muito de me preparar para solos – gosto de me surpreender. Esse pode ter sido uma compilação de alguns takes".

"Há um monte de ingredientes líricos diferentes nessa canção. Para começar, trata-se de uma canção de um outro autor (...). Sempre admirei muito as composições de Pye, e temos uma relação de trabalho bem próxima, com toda a banda. Dessa forma, ele me deu essa canção e sugeriu que poderia ser adequada para nós. Adcionei algumas coisas na letra, de modo que ela fosse cinquenta por cento minha e cinquenta por cento dele. A postura dela traz a personalidade de um roqueiro dos tempos modernos".

"Estávamos na fazenda de Ronnie Hawkins que havíamos alugado para o verão, a fim de fazermos a composição e a pré-produção do disco"
, continua o baterista. "Colaborei na letra, e Pye passou a me dar grandes livros clássicos para exercitar a expansão poética. Sou bom em impor ordens, por isso peguei sua letra e adicionei um pouco das minhas próprias imagens, estrutura, temas e todas essas coisas. Essa canção nos encontra em um momento de muita confiança, onde estávamos aprendendo a fazer composições de apenas seis minutos, ao invés de doze ou quinze, e utilizando os mesmos padrões de arranjo. A bateria é muito detalhada, mas quando vamos para o meio, para o momento estranho, foi pura improvisação. Eu me perdi e perfurei meu caminho para sair dali e, de alguma forma, voltei para a peça. Essa improvisação se tornou uma nova parte. É uma daquelas peças-chave que eu amo, sendo de fato um erro do qual tive sorte de ter saído".

"Tom Sawyer" foi a cristalização de um novo e moderno Rush: um poderoso hard rock finamente trabalhado com uma mensagem enérgica e profundamente filosófica. Peart escolheu um título mais simples e direto que poderia, complementando a composição com elementos relativamente autobiográficos. Como ele mesmo afirmou, a canção servia para "conciliar o menino e o homem dentro de mim". O arcabouço musical também foi um ponto de partida.

"Estruturalmente, a forma como a música se desenvolve é muito interessante, indo do primeiro verso para uma ponte que invade o refrão, seguindo para o solo e repetindo", explica Lifeson. "Não era um tipo de estrutura típica para nós naquele momento. Moving Pictures foi diferente, fluindo mais de jams. Grande parte do material veio do chão, e esse foi, certamente, o caso de 'Tom Sawyer'. Estávamos ensaiando em uma pequena fazenda nos arredores de Toronto, onde a metade do celeiro era uma garagem e a outra metade um pequeno espaço para ensaios. Geralmente começávamos uma jam lá e desenvolvíamos as canções dessa maneira".

"A composição original trazia uma espécie de retrato de um rebelde dos dias modernos, um individualista de espírito livre que pairava pelo mundo com os olhos bem abertos, sempre atento e repleto de intenções e propósitos"
, lembra Peart. "Acrescentei os temas sobre a conciliação do garoto e do homem dentro de mim mesmo e também a diferença entre o que as pessoas são e o que os outros apenas percebem que elas sejam".

"Gosto muito do estilo de escrita do Pye. Suas frases são quase que inescrutáveis para mim, assim como acho que sejam para outras pessoas. Porém, há um certo poder de imagem em sua escrita, além de uma estranha simbiose que parece afetar as canções. Quando Pye estava envolvido em 'Tom Sawyer', ele a havia feito um pouco diferente musicalmente, percolando-a através de mim. Eu pegava as ideias dele, acrescentava as minhas e as estruturava como uma canção do Rush, e então repassava aos outros integrantes. Mesmo através desta corrente de eventos, de alguma forma, houve essa influência externa, algo que foi bom para nós. Deixávamos a porta aberta para suas observações. Sempre que tinha ideias ele nos mostrava, normalmente rabiscadas em um caderno de exercícios. E, neste caso, foi uma daquelas vezes em que todos respondemos a algumas das imagens em sua apresentação. Então fui trabalhar nela, moldei-a no tipo de estrutura que gostamos, adicionando algumas das minhas próprias imagens e ângulos. Foi assim".

"Há trechos nessa canção que não entendo necessariamente"
, continua o baterista. "Mas gosto da sua arrogância implícita, uma arrogância enganada. A seção instrumental cresceu de uma pequena melodia que Geddy vinha utilizando para configurar seus sintetizadores nas passagens de som, ficando esquecida até que procurássemos por uma parte para a música, com a mesma emergindo como um tema muito forte. Eu toco toda a música com força total, e levei cerca de um dia e meio para gravá-la. Lembro-me de entrar em colapso ao fim com as mãos esfoladas e doloridas. Tocava o bumbo com tanta força que meus dedos estavam esmagados e também doloridos. Fisicamente, essa foi a canção mais difícil".

Geddy e Alex se uniram a Peart para transformar "Tom Sawyer" em música. Geddy traz de forma marcante seu sintetizador Oberheim OB-X e um sequenciador digital Roland, criando um som único e bastante característico. O solo incomum de Lifeson é, na verdade, uma reunião de cinco takes gravados por ele em uma única tacada. Após sua quinta tentativa, o guitarrista foi fumar um cigarro do lado de fora do estúdio e não conseguiu criar novamente a atmosfera necessária que almejava nos takes seguintes.

Do ponto de vista da percussão, Peart sempre deixou claro que "Tom Sawyer" foi um temas mais difíceis de serem executados ao vivo. "É algo mais relacionado à sutileza do que outra coisa. Quanto mais refinado fica seu conhecimento e seu gosto, maior também será a sua busca pelas sensibilidades", explica. "Esse sentimento de busca pela sutileza é fundamental, e é isso que persigo em praticamente todas as músicas. Sempre ouço as gravações de 'Tom Sawyer' para ter certeza de que estou acertando os tempos. O menor deslize em nosso feeling pode afetar tudo consideravelmente. Se, mesmo sem querer, Geddy puxa a linha vocal de uma forma um pouco mais rápida, cabe a mim a missão de trazer tudo um pouco pra trás, deixando a coisa toda respirar. É difícil ganhar essa noção de sutileza, e mais difícil ainda é busca-la todas as noites".

"Torna-se cada vez mais evidente, para nós, o quão valioso é sair em turnê, principalmente para nosso desenvolvimento como músicos individuais, pois estas direcionam a progressão da nossa música. Às vezes, nos dias sombrios de depressão no meio de uma turnê (trazida pelo cansaço, saudade e frustração), o estresse parecem superar os benefícios. Mas, quando chegamos às provas finais de composição e gravação, a evidência de mudança e melhoria são muito gratificantes".

"De muitas maneiras, 'Tom Sawyer' foi a música mais difícil de gravar no álbum"
, afirma Geddy. "Lembro que, embora a composição tenha chegado rapidamente, colocá-la na fita foi um pouco mais difícil. Estávamos tentando sons diferentes, vindo com uma abordagem totalmente atípica para a letra - como um tipo de coisa falada - buscando o som certo para a guitarra do Alex e tudo mais. Essa era uma espécie de azarão e, na mixagem, tudo surgiu. Quando terminamos, ficamos muito satisfeitos com o que aconteceu, pois estávamos com baixas expectativas devido sua dificuldade. Acho que muitos músicos provavelmente passaram por coisas semelhantes, onde eles têm uma canção com a qual batem cabeça, mas que acaba se tornando a sua maior".

"Eu estava decepcionado no estúdio, achando que não havíamos capturado o espírito da canção"
, continua o baixista. "Achávamos que era a pior música do disco naquele momento – mas tudo aconteceu na mixagem. Às vezes você não tem a objetividade de saber quando está fazendo o seu melhor trabalho".

"Lembro do quão legal soou quando estávamos fazendo as camadas de teclado para a abertura no topo dos demais elementos, do poder e do ímpeto que elas tinham"
, diz Alex. "E também da resistência do Neil nessa abertura, onde é basicamente sua bateria e Geddy com seu áspero sintetizador longínquo ao fundo, para em seguida o resto da banda entrar e gritar durante todo o tempo. Sempre achei que tínhamos, de fato e mais uma vez, conseguido o que propusemos com o tema da canção - esse tipo real de atitude rebelde punk".

"Nessa canção, o sintetizador é uma parte chave"
, continua. "Havia uma bela integração entre nós três e os teclados - mesmo com eles, ainda tínhamos a sensação de trio. Além disso, sempre sentimos que tínhamos a necessidade de replicar cada música o mais fielmente possível quando as tocássemos ao vivo, e 'Tom Sawyer' foi escrita dessa forma. Não há nenhuma guitarra base sob o solo ou algo do tipo".

"É engraçado porque, quando comecei, meu som identificável era com o Rickenbacker, com o qual toquei durante vários anos"
, lembra Geddy. "Acho que foi com o Moving Pictures que comecei a adicionar o Fender. Eu o utilizei em 'Tom Sawyer' e em algumas outras canções, e a maioria das pessoas afirma ser o Ricky".

"Nunca me canso de tocar essa canção"
, continua. "O fato dela ser extremamente popular sempre me fascina, sendo mais sobre inocência do que qualquer outra coisa. Acho que, até hoje, essa é mensagem que ela transmite às pessoas. A música traz aquela parte estranha do meio, e se você consegue fazer uma canção ser extremamente popular com essas estranhezas, vejo como uma grande vitória. Há normalmente uma ou duas músicas com as quais se briga com unhas e dentes nos álbuns, e 'Tom Sawyer' foi uma delas - uma verdadeira luta até chegarmos no final. Tudo que fizemos nela foi como que arrancar um dente. Alex, por exemplo, testou centenas de sons diferentes para o solo de guitarra. Há sempre uma música que te assombra e que te deixa maluco e, certamente, com 'Tom Sawyer' foi dessa forma", completa.

"Não há nenhuma tomada em 'Tom Sawyer' fácil de tocar – ela ainda toma tudo o que tenho", afirma Peart. "Para conseguir o som e a sensação certos, uma linha de bateria como essa exige força total, toques contundentes com as mãos e pés, mas também uma grande exigência técnica, suavidade e concentração. Tocar 'Tom Sawyer' corretamente – ou o mais próximo que eu conseguir chegar em uma determinada noite – requer um compromisso mental, técnico e físico completo, e não consigo imaginar qualquer outra maneira mais fácil de realizar essa produção. E se você me perguntar, não deveria mesmo haver uma. Se não fosse difícil, não seria tão satisfatório conseguir tocá-la corretamente".

Curiosamente, a composição musical de "Tom Sawyer" trouxe uma pequena polêmica. Os integrantes da banda norte-americana Journey afirmam que o instrumental da canção "Nickel & Dime", do seu terceiro álbum Next, de 1977 (lançado antes da chegada do vocalista Steve Perry), inspirou o Rush com trechos em sua composição. No box do Journey Time 3, de 1992, o encarte afirma, "Novamente, essa canção atraiu a atenção de colegas músicos do Journey, notavelmente os integrantes do Rush, que construíram a canção 'Tom Sawyer' com uma linha suspeitosamente similar".

O Rush, através das ideias líricas de Peart, experimentou uma longa e significativa fase com as influências em torno da obra de Ayn Rand - a conexão entre grande parte das letras com as ideias da escritora sempre foram muito claras. "Tom Sawyer", por sua natureza, remete inclusive (e sem esforço) aos famosos personagens Hank Rearden de A Revolta de Atlas (1957) ou Howard Roark de A Nascente (1943).

Embora sua música encontre Rand, Twain e vários outros escritores, Peart, sobre suas próprias palavras, é "um discípulo de ninguém". Mergulhando em suas letras, podemos montar uma filosofia pessoal, uma combinação entre objetivismo, individualismo, fatalismo, existencialismo e inúmeras outras fontes. Tanto a canção "Tom Sawyer" quanto o livro de Twain personificam um tipo de indivíduo ousado que rompe com o status quo, explorando e, sobretudo, representando um deslocamento no paradigma humano que se refere à evolução racional. Esse fato se encaixa, em maior ou menor grau, à ideia de Sigmund Freud (1856 - 1939) de que o homem evolui de tal forma que lança mão de sua dependência em ideais como religiões ou normas sociais, substituindo tais dependências com uma maior aplicabilidade da razão. Isso leva o indivíduo a uma auto-suficiência, uma auto-consciência e um senso de responsabilidade com seu próprio destino. Tais ideais podem, sem esforço, explicar o cerne de "Tom Sawyer" e, de maneira ampla, as preocupações de Peart refletidas em suas letras no Rush.

Segundo Lee, "Em algum momento da minha vida tive uma influência formativa vinda de Rand, porém sendo apenas uma de muitas, eu diria. Houve muitos momentos no passado em que não me sentia feliz com as letras que Neil trazia. Aconteceu mais vezes em nossos primeiros dias, e na época do Moving Pictures já era menos prevalente. Ele me traz ideias para algumas canções uma vez que escreve as letras. Dessa forma, passo por elas e faço comentários. As vezes fico totalmente feliz com o que ele prepara e sugere. Em outros momentos, anoto algumas frases que gosto e ele, em seguida, retorna para reconstruir a canção. Há muita comunicação entre nós, sendo ele, obviamente, muito consciente. Neil é raro pois, para ele, o que importa é realizar o trabalho. Se suas letras acabarem no álbum, tudo bem. Se não, ele aceita sem discussão".

Ainda sobre a obra de Twain, é preciso ter em mente que o personagem Tom Sawyer não é apenas um rebelde, mas a própria voz filosófica do escritor. O protagonista é a personificação de um ponto de vista, utilizado como uma crítica contra a sociedade. O novo Tom Sawyer retratado na letra de Peart não é diferente: ele traz a certeza em si de um universo totalmente aleatório e indiferente mas sem abandonar os seus propósitos. Com "Tom Sawyer", Peart reimagina o garoto inquieto de Twain como um jovem contemporâneo sem ideias fixas, mas com fome de novidades.

"Bem, ele é o mesmo cara, presumo", diz Peart. "Há muito da minha infância lá. Cresci em um ambiente de atmosfera semi-rural, onde eu poderia sair e flutuar em jangadas, nadar nu em lagos, coisas do tipo. A imagem do Tom Sawyer dos tempos modernos também me atraiu bastante. Pra começar, a letra é de outra pessoa, por isso não posso falar com autoridade sobre ela, e há partes da canção que não entendo de fato. Mas eu gosto de como soa, acho que devido a arrogância implícita e a despreocupação do personagem".

Moving Pictures intensificaria, definitivamente, as doses autobiográficas nas investidas líricas de Peart, e "Tom Sawyer", por si só, apresenta imediatamente tal característica. "...É uma arrogância mal compreendida. Na verdade, não é arrogância", explica o letrista. "De certa forma, a canção traz uma afirmação muito pessoal - geralmente olho para ela assim. Sou acusado abertamente de ser arrogante, quando, na verdade, trata-se apenas de timidez e introversão que vêm no calor do momento. Várias pessoas tímidas que conheço são taxadas de arrogantes, somente porque não são despreocupadas, do tipo tapinha nas costas e 'vamos tomar uma cerveja'. É apenas uma necessidade de isolamento do tipo de situação na qual não me sinto confortável, da qual apenas me retiro".

Perguntado se não se sente bem no mundo real, Peart responde:

"Ao contrário, me sinto muito confortável no mundo real. Seja nas ruas de Chicago, Nova York, Londres... me sinto um ser humano consumado. (...) Há sempre coisas desonestas que esperam que você acate, joguinhos que esperam que você jogue para os quais Tom Sawyer e eu mesmo não temos tempo ou inclinação, nem satisfação".

O Tom Sawyer representado por Dubois e Peart pretende ser um homem comum, mas funcionando simultaneamente para a sociedade como um modelo filosófico que caminha em direção a um próximo nível de iluminação, verdade e racionalidade. Ao longo do caminho, ele encontra opositores e obstáculos que dificultam o percurso ao seu objetivo, e esses são referidos como o atrito do dia. Na canção, o Rush sintetiza tudo o que sempre buscou transmitir com sua obra: o mundo é o que fazemos dele, e nosso maior valor é nos mantermos fieis aos nossos princípios e jamais desistindo deles. Não importa o que outros digam ou pensem sobre nós, não devemos jamais negociar nossos ideais. Há aqui o desejo de viver a vida como verdadeiramente se deseja. O espírito livre desenhado nessa canção reflete novamente o individualismo tão visitado por Peart, que não se curva involuntariamente à autoridade, religião, mídia, sociedade e governos. Sua recusa em obedecer não deve ser vista como arrogância, mas sim como reserva.

"'Tom Sawyer' é a única canção que teremos que tocar pelo resto de nossas vidas", completa o baixista. "Quando a compomos, não tínhamos ideia de que ela iria tocar o nervo das pessoas. Em muitos aspectos, é a canção do Rush por excelência. Sempre que penso em Moving Pictures, a primeira coisa que vem à mente é 'Tom Sawyer', que traz nós mesmos em todos os lugares. É utilizada em filmes, programas de TV e em vários âmbitos diferentes. Estranhamente, foi a canção na qual trabalhamos mais pesadamente no estúdio, pois não parecia certa. Parecia que estava perdendo para as demais e, por fim, terminou com todos a adorando. Isso só prova que você nunca tem certeza do que as pessoas vão pensar quando termina um álbum".

"'Tom Sawyer' é uma marca registrada nossa"
, diz Lifeson. "É muito poderosa musicalmente, e liricamente traz um espírito que ressoa em muitas pessoas. É cativante, uma espécie de hino nosso".

© 2015 Rush Fã-Clube Brasil

LADD, J. "Innerview - Neil Peart / Innerview with Jim Ladd". June 11, 1981.
SEARGENT, J. "'Rock Hour' With Alex Lifeson". BBC Radio, July 1981.
REDBEARD. "Moving Pictures - In The Studio - In The Studio with Redbeard". Show #28, week of January 2, 1989.
BOSSO, J. "Rush's Alex Lifeson Talks Moving Pictures: Track-By-Track / Classic 1981 Album Out On Blu-Ray, Performed In Full On Tour". MusicRadar, May 9, 2011.
HUGHES, A. "Like Clockwork". Bass Guitar, July 2012.
CLASSIC ROCK. "Rush: Tom Sawyer". March 2011.