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TOM SAWYER RED BARCHETTA YYZ
RED BARCHETTA
My uncle has a country place
That no one knows about
He says it used to be a farm,
Before the Motor Law
And on Sundays I elude the Eyes,
And hop the Turbine Freight
To far outside the Wire,
Where my white-haired uncle waits
Jump to the ground
As the Turbo slows to cross the Borderline
Run like the wind,
As excitement shivers up and down my spine
Down in his barn,
My uncle preserved for me an old machine,
For fifty-odd years
To keep it as new has been his dearest dream
I strip away the old debris
That hides a shining car
A brilliant red Barchetta
From a better, vanished time
I fire up the willing engine,
Responding with a roar
Tires spitting gravel,
I commit my weekly crime...
Wind -
In my hair -
Shifting and drifting -
Mechanical music
Adrenalin surge -
Well-weathered leather,
Hot metal and oil,
The scented country air
Sunlight on chrome,
The blur of the landscape,
Every nerve aware
Suddenly ahead of me,
Across the mountainside,
A gleaming alloy air-car
Shoots towards me, two lanes wide
I spin around with shrieking tires,
To run the deadly race,
Go screaming through the valley
As another joins the chase
Drive like the wind,
Straining the limits of machine and man
Laughing out loud
With fear and hope, I've got a desperate plan
At the one-lane bridge
I leave the giants stranded
At the riverside
Race back to the farm
To dream with my uncle
At the fireside
My uncle has a country place
That no one knows about
He says it used to be a farm,
Before the Motor Law
And on Sundays I elude the Eyes,
And hop the Turbine Freight
To far outside the Wire,
Where my white-haired uncle waits
Jump to the ground
As the Turbo slows to cross the Borderline
Run like the wind,
As excitement shivers up and down my spine
Down in his barn,
My uncle preserved for me an old machine,
For fifty-odd years
To keep it as new has been his dearest dream
I strip away the old debris
That hides a shining car
A brilliant red Barchetta
From a better, vanished time
I fire up the willing engine,
Responding with a roar
Tires spitting gravel,
I commit my weekly crime...
Wind -
In my hair -
Shifting and drifting -
Mechanical music
Adrenalin surge -
Well-weathered leather,
Hot metal and oil,
The scented country air
Sunlight on chrome,
The blur of the landscape,
Every nerve aware
Suddenly ahead of me,
Across the mountainside,
A gleaming alloy air-car
Shoots towards me, two lanes wide
I spin around with shrieking tires,
To run the deadly race,
Go screaming through the valley
As another joins the chase
Drive like the wind,
Straining the limits of machine and man
Laughing out loud
With fear and hope, I've got a desperate plan
At the one-lane bridge
I leave the giants stranded
At the riverside
Race back to the farm
To dream with my uncle
At the fireside
BARCHETTA VERMELHA
Meu tio tem uma casa no interior
Sobre a qual ninguém sabe
Ele diz que costumava ser uma fazenda,
Antes da Lei do Motor
E nos domingos me esquivo dos Olhos,
E viajo clandestinamente no Trem de Carga
Para bem distante da Cerca
Onde meu tio de cabelos brancos me aguarda
Salto para o chão
Assim que o Trem diminui para cruzar a Fronteira
Corro como o vento,
Enquanto a emoção me dá arrepios na espinha
Lá embaixo em seu celeiro,
Meu tio conservou uma velha máquina para mim,
Por cinquenta e poucos anos
Para mantê-la tão nova quanto seu sonho mais precioso
Removo as lonas velhas
Que ocultam o carro reluzente
Uma brilhante Barchetta vermelha
De um tempo melhor, esquecido
Dou partida no motor preparado,
Que responde com um rugido
Pneus lançando cascalho,
Cometo meu crime semanal…
Vento -
No meu cabelo -
Trocando as marchas e derrapando -
Música mecânica
Surto de adrenalina -
Couro bem desgastado,
Metal quente e óleo,
O ar perfumado do interior
Luz do sol no cromado,
O borrão da paisagem,
Cada nervo alerta
Repentinamente à minha frente,
Do outro lado da montanha,
Um carro de liga brilhante movido a ar comprimido
Dispara em minha direção, duas faixas de largura
Eu rodo cantando pneus,
Para fazer a corrida mortal,
Sigo gritando pelo vale
Enquanto mais um se junta à perseguição
Dirijo como o vento,
Forçando os limites entre máquina e homem
Gargalhando alto
Com medo e esperança, tenho um plano desesperado
Na ponte de faixa única
Deixo os gigantes encalhados
Na beira do rio
Corro de volta à fazenda
Para sonhar com meu tio
Na lareira
Meu tio tem uma casa no interior
Sobre a qual ninguém sabe
Ele diz que costumava ser uma fazenda,
Antes da Lei do Motor
E nos domingos me esquivo dos Olhos,
E viajo clandestinamente no Trem de Carga
Para bem distante da Cerca
Onde meu tio de cabelos brancos me aguarda
Salto para o chão
Assim que o Trem diminui para cruzar a Fronteira
Corro como o vento,
Enquanto a emoção me dá arrepios na espinha
Lá embaixo em seu celeiro,
Meu tio conservou uma velha máquina para mim,
Por cinquenta e poucos anos
Para mantê-la tão nova quanto seu sonho mais precioso
Removo as lonas velhas
Que ocultam o carro reluzente
Uma brilhante Barchetta vermelha
De um tempo melhor, esquecido
Dou partida no motor preparado,
Que responde com um rugido
Pneus lançando cascalho,
Cometo meu crime semanal…
Vento -
No meu cabelo -
Trocando as marchas e derrapando -
Música mecânica
Surto de adrenalina -
Couro bem desgastado,
Metal quente e óleo,
O ar perfumado do interior
Luz do sol no cromado,
O borrão da paisagem,
Cada nervo alerta
Repentinamente à minha frente,
Do outro lado da montanha,
Um carro de liga brilhante movido a ar comprimido
Dispara em minha direção, duas faixas de largura
Eu rodo cantando pneus,
Para fazer a corrida mortal,
Sigo gritando pelo vale
Enquanto mais um se junta à perseguição
Dirijo como o vento,
Forçando os limites entre máquina e homem
Gargalhando alto
Com medo e esperança, tenho um plano desesperado
Na ponte de faixa única
Deixo os gigantes encalhados
Na beira do rio
Corro de volta à fazenda
Para sonhar com meu tio
Na lareira
Inspirada em "A Nice Morning Drive", de Richard S. Foster
Um indivíduo que quebra regras totalitárias em uma incrível perseguição sci-fi
A segunda faixa de Moving Pictures é "Red Barchetta", um fantástico amálgama que reflete o Rush clássico rumo à modernidade. A canção traz, literalmente, uma espécie de tributo musical ao movimento, a partir da homenagem de Neil Peart ao seu automóvel favorito na época de sua concepção, a esportiva Ferrari 166MM. Criando uma incrível narrativa futurista, o baterista utiliza como inspiração principal um pequeno conto chamado "A Nice Morning Drive", escrito por Richard S. Foster originalmente publicado na revista norte-americana Road & Track, em 1973.
"Red Barchetta" expõe de imediato os traços do Rush renovado, funcionando como uma espécie de trilha sonora iluminada, arejada e inspiradora que deságua sensações que vão além da música. A partir de harmônicos iniciais hipnóticos e inconfundíveis, a composição se desdobra cada vez mais envolvente - sua dinâmica, sem esforço, remete ao veículo em movimento, exibindo fortes características cinematográficas e mergulhando o ouvinte em sua trama repleta de senso de liberdade e juventude. É praticamente impossível não se emocionar ao imaginar os cenários da canção, uma jornada repleta de nostalgia e harmonia, um passeio rural em um carro dos sonhos.
Com a letra fluindo em perfeitamente entrelaçada à música, a história retrata uma realidade onde os automóveis tradicionais são terminantemente proibidos, utilizando tons variados com a graça do cinema. A música progressiva produzida pelo Rush funciona aqui em sua mais alta ordem, combinando elementos que proporcionam toda a excelência técnica nesse propósito.
"Essa foi a intenção em 'Red Barchetta', a de criar uma composição que fosse bem vívida, para que você pudesse sentir tudo aquilo caso parasse para prestar atenção na letra e nas ações", explica Alex Lifeson. "Ela se torna um filme, e acho que funcionou muito bem, sendo bem-sucedida nessa intenção. É algo que tentaremos continuar, nos tornando um pouco mais visuais em nossa música. Essa, em particular, foi muito satisfatória, sempre foi uma das minhas favoritas - provavelmente minha favorita do álbum. Gosto de como as partes dela se costuram, gosto das mudanças e da melodia da canção. Adoro sua dinâmica: a maneira como abre com os harmônicos, criando toda aquela atmosfera, passando para a seção mediana onde grita bastante, na qual você se sente em um carro aberto com a música sempre muito vibrante e tocante. E então a canção termina como começou, com aqueles ares tranquilos que lhe devolvem ao chão levemente. Ela te apanha para a coisa toda e te deixa no próximo ponto".
"Enquanto trabalhamos nesse disco, tentávamos coisas novas e diferentes", continua Alex. "Mudamos a forma de abordagem das composições e de sua apresentação. Estávamos fazendo canções mais compactas, como 'Red Barchetta'. A estrutura dessa melodia foi ótima, tornou-se quase visual com você podendo ver uma corrida de carros. E, melodicamente, ela conta a história muito bem".
"Fiquei muito orgulhoso dessa canção", diz Geddy Lee. "Nós a adoramos desde o início. Ela tem uma ótima dinâmica do começo ao fim e com todos os elementos de uma criação do Rush. Traz um bom ritmo acelerado e momentos mais calmos, e também Alex em seu pranto na guitarra. Tem uma dissonância controlada nos riffs, que vieram como um erro quando eu e Alex estávamos nas seções de riffs pesados. Certas notas que fazíamos não eram para serem tocadas juntas, mas tudo parecia funcionar. A interação entre baixo e guitarra veio de fato no Moving Pictures, e 'Red Barchetta' é um excelente exemplo".
"[Moving Pictures] é uma espécie de consolidação", reforça o baixista. "Se você olhar para o disco de forma objetiva, ele é bem diferente de Permanent Waves. É complexo, uma espécie de salto à frente".
"Red Barchetta" é embalada por melodias agradáveis aliadas à uma performance vigorosa, digna do power-trio no auge de sua força e criatividade. Se em "2112" a guitarra havia sido banida pelos sacerdotes, algo similar acontece nessa faixa - dessa vez com um carro. Surpreendentemente, a canção foi gravada em take único, rememorando liricamente a veia sci-fi amplamente utilizada na década anterior. "Tomamos ciência da natureza ambiciosa daquele projeto de maneira dolorosa", lembra Peart. "Tivemos que trabalhar duro por muitos dias para capturar os sons e a performance correta para cada música. A única exceção, sem razão aparente, foi 'Red Barchetta', gravada em um único take. Esse fato acabou surpreendendo a nós mesmos".
"Red Barchetta" combina cirurgicamente áreas temáticas como o pastoril, o onírico, a nostalgia, a tecnologia e a transgressão, mesclando perfeitamente o amor de Peart pelo movimento, pelas máquinas e pela ficção científica. Embora Lifeson utilize apenas guitarras na canção, um timbre próximo ao acústico é trazido nos marcantes harmônicos introdutórios, além da escolha por sonoridade mais limpa nos versos. Liricamente, a canção persegue, de certo modo, a proposta da anterior "Tom Sawyer", continuando a refletir a tônica das ideias habitualmente exploradas pela banda em suas construções. Temos, nesse conto musical, uma espécie de observação sobre as regras forçadas em prol do coletivo, com a tecnologia, nesse caso, refletindo o espírito da natureza, da habilidade, da criatividade e da ousadia inerente ao ser humano. A vitalidade do protagonista é suplantada pelo peso da própria modernidade e do nivelamento e, como em "2112" (de 2112, de 1976) e "The Trees" (de Hemispheres, 1978), "Red Barchetta" traz o aviso de que perdemos quando concedemos aos governos o direito de impor o bem comum.
O Rush concebe nessa faixa uma canção em narrativa, e tal característica ainda seria explorada em outros momentos. Destacadamente, "Red Barchetta" retoma alguns dos elementos do passado, porém sua história também expõe uma nova postura que seria adotada pela banda dali para frente: uma abordagem mais cotidiana e escapista.
O conto "A Nice Morning Drive", de Richard Foster, mostra um cenário futurista similar ao utilizado na canção, onde velocidade e fuga são prazeres perigosos - carros (e a liberdade que estes implicam) são proibidos. Com as normas de segurança se tornando cada vez mais rigorosas, essas acabam forçando massivamente uma evolução dos automóveis para os chamados Modern Safety Vehicles (Veículos Modernos Seguros), ou simplesmente MSVs, capazes de suportar impactos de oitenta quilômetros por hora sem danos ao motorista. Consequentemente, os condutores dos MSVs se tornam menos preocupados com a segurança e mais agressivos, se chocando intencionalmente com carros mais antigos e menores, o que acaba incitando um tipo de esporte bizarro para alguns deles. Enquanto trabalhava no álbum, Peart fez várias tentativas de contato com Foster, mas a revista Road & Track não dispunha do seu endereço atualizado, tendo em vista que o conto havia sido escrito cerca de oito anos antes. Mesmo assim, a banda decidiu mencionar no encarte a inspiração e seu autor com uma nota na letra da canção. Felizmente, décadas mais tarde, os dois se encontraram pela primeira vez, no estado da Virgínia Ocidental.
"Em 1972, eu estudava para as provas da minha pós-graduação", lembra Foster. "De repente, me ocorreu a ideia para um conto de ficção científica, e prontamente comecei a escrever. A história, intitulada 'A Nice Morning Drive', foi situada em um futuro distante (1982!), e envolvia os Modern Safety Vehicles (MSVs) que poderiam danificar os carros mais antigos - carros com pára-choques de segurança que não permitiam que ocorresse danos nos mesmos. Com uma mistura de esperança e presunção, enviei o mesmo à revista Road & Track, e eles decidiram publicá-lo! Me pagaram duzentos dólares, o que representava muito dinheiro na época, especialmente para um estudante de pós-graduação duro. O artigo foi publicado na edição de novembro de 1973".
"Neil Peart, que se juntou ao Rush alguns anos antes e que tem sido um entusiasta de carros esporte durante toda a vida leu a história", continua. "Avançando a 1980, ele decidiu escrever uma canção para a banda em uma linha de ficção científica inspirada nesse artigo da R&T. Ele substituiu o carro em sua história pelo seu favorito de todos os tempos, uma Ferrari 166MM, ao invés do MGB que utilizei (embora ele próprio já tivesse sido dono de um MGB). Ele também retratou um cenário futurista mais extremo, envolvendo um confronto homem-máquina com aqueles que haviam proibido os carros em um mundo totalitário".
"Red Barchetta" descreve um futuro onde muitas classes de veículos foram proibidas pela chamada "Lei do Motor" ("Motor Law"). O tio do narrador manteve um desses veículos considerados ilegais (o esportivo vermelho do título) preservado por pouco mais de cinquenta anos, escondido em sua propriedade no interior. Todos os domingos, o jovem protagonista segue para o local escondido em um trem de carga, a fim de dirigir o automóvel pelo campo. Em um desses passeios, ele se depara com um veículo a ar comprimido de liga reluzente, este que inicia uma perseguição ao longo das estradas interioranas. Um segundo veículo do mesmo tipo se junta à corrida, que continua até o protagonista conduzi-los a uma ponte muito estreita para os carros a ar, a qual ele atravessa sem problemas - conseguindo assim conter seus algozes. Após a aventura, a canção termina com o jovem retornando com segurança à fazenda do tio.
O veículo escolhido, a Ferrari 166 MM, foi produzido de 1947 a 1953. Primeiro carro esporte em série com um chassi da montadora, a 166 ganhou seu nome devido aos 166 centímetros cúbicos de capacidade de cada um dos seus 12 cilindros. A marca MM simboliza a vitória da Ferrari em 1949 na lendária e cruel Mille Miglia, famosa corrida automobilística de longa distância disputada na Itália por 24 edições, de 1927 a 1957. Com velocidade máxima de 220 km/h (possivelmente o carro esporte mais rápido do mundo em sua época), a Barchetta (termo que significa "pequeno barco" em italiano, utilizado na indústria automotiva para carros de dois lugares sem capota) faturou um total de 80 prêmios entre abril de 1948 e dezembro de 1953, incluindo as 24 Horas de Le Mans, em 1949. De acordo com o livro "The Complete Ferrari", de Godfrey Eaton, a pronúncia correta é "Barqueta", tendo Geddy reconhecido mais tarde que pronunciou a palavra incorretamente na canção, após um amigo de raízes italianas lhe ensinar o modo correto.
"Acho que Neil tinha uma Ferrari na época em que escreveu a canção", diz Geddy. "Ele é um grande amante de carros! Ele pensava muito nos carros da Ferrari nesse período e acho que procurou um desses modelos em um livro antigo. Eu e Alex nunca pensamos em letras ou qualquer coisa do tipo. Quanto mais conhecemos o Neil, mais percebemos o imenso conhecimento do idioma inglês e seu interesse pela leitura. Ele é um cara muito diferente de nós - uma pessoa cheia de ideias e bastante descritiva".
"Red Barchetta" traz uma forte gama de imagens - paisagens distintas, sons, cheiro de couro, metal quente e óleo. Trata-se de uma história emocionante de ação e aventura, sendo talvez o exemplo mais claro da ideia central do álbum: a de oferecer canções que funcionem como pequenos filmes. Na história, o herói que desafia a autoridade é mostrado ao lado de efeitos pictóricos extras, como quando Lifeson sola com sua guitarra em delay, a partir do queimar dos pneus no asfalto antes de atravessar um túnel (como retratado no antigo vídeo de Exit...Stage Left). Tais elementos capturam nostalgia, alegria, ação e escapismo em uma viagem emocional perfeitamente paralela à narrativa da canção.
Mesmo com estrutura atípica livre de refrões e composta por versos de climas variados, a música do Rush também expõe breves passagens rock mais simples, onde compassos 4/4 são combinados em frases padronizadas. Em "Red Barchetta", o carro na estrada aberta representa a liberdade do sistema finalmente possível - momentos de glória, vitória e paz interior. Na passagem emocionante que se aproxima da seção de excesso de velocidade sem impedimentos (onde o protagonista comete o seu crime semanal), a música se mostra repleta de toques sincopados que acabam por conduzir o próprio ouvinte e, nos momentos de adrenalina, todos os pequenos componentes são cuidadosamente pensados. A banda, em sua complexidade, traz o texto fixado em uma pontuação musical clássica, mas com uma execução ativa que move e envolve o ouvinte, tanto intelectualmente quanto corporalmente.
Peart escolhe um automóvel como símbolo de liberdade e individualismo em uma sociedade futura que no mínimo é governada por um estado paternalista ou totalitário. O contraponto é pensar na glorificação de um automóvel que se opõe à ideia dos transportes sustentáveis. Portanto, temos nessa canção uma espécie de batalha entre uma regulamentação social e econômica e a liberdade do indivíduo.
Da mesma forma que a história fantástica de "Cygnus X-1", contada nos álbuns A Farewell to Kings (1977) e Hemispheres (1978) - esta percorre grandes distâncias para explorar fenômenos de um mundo misterioso - "Red Barchetta" explora temas cotidianos, a partir de um indivíduo que se distancia para um ambiente diferente do seu de costume.
O cenário remete a uma sociedade orwelliana, descrevendo "Os Olhos" ("The Eyes") como elementos que controlam todos os movimentos das pessoas e a "Cerca" ("The Wire"), que representa a instituição do isolamento e separação. Além disso, "Red Barchetta" menciona o "crime semanal" do protagonista, que se enche de alegria ao experimentar emoções que a alta velocidade e o controle de uma máquina potente podem trazer. Essas sensações são ainda mais realçadas pela poesia que traz a luz do sol, a força do vento e o perfume dos campos. O jovem, claramente, saboreia o despertar de sentimentos estonteantes e eufóricos dessa liberdade reprimida, imagem que acaba por estampar, inevitavelmente, porções derivativas das obras de George Orwell ("1984") e dos pensamentos de Ayn Rand, categoricamente já visitados em outras composições da banda.
"Red Barchetta" traz o inconfundível jogo de prazer e da vaidade jovem, com suas seções representando de maneira perfeita o que muitos chamam de "canção de estrada" - viagens existenciais materializadas pela liberdade de uma estrada aberta. Propondo essa fantasia juvenil, que traz o carro como símbolo de transgressão e liberdade, a composição exibe, de certa forma, o ritual adolescente de aprender a dirigir, que se associa à redução da dependência parental que, nos casos de jovens como foram os integrantes do Rush (criados em subúrbios), pode representar uma ferramenta de libertação claustrofóbica desses pequenos bairros. Essa romantização acaba se aproximando de muitos jovens que experimentam os mesmos cenários, fato que se tornaria recorrente nas criações seguintes dos canadenses.
Para a canção, não seria escolhido qualquer carro para substancializar tal símbolo. A Barchetta cede à fantasia masculina de liberdade, além do poder, risco e transgressão, resumindo independência e individualismo, elementos sempre abordados pelo Rush em suas canções. Por seu tamanho compacto e a inexistência de um banco traseiro - com espaço para um único passageiro - esses veículos podem significar a solidão e o poder a serem exibidos publicamente. O carro esporte é projetado para transgredir, para quebrar as leis em sua capacidade de exceder limites normais e seguros de uma viagem em uma margem considerável. Lidando com o veículo, o motorista se sente excepcional, sem estar totalmente vinculado às regras da sociedade. Definindo "Red Barchetta" nesse futuro controlado, a máquina toma a condição de um tipo de crime. Novamente, a transcendência através da fantasia escapista é conseguida: o protagonista experimenta a emoção da velocidade e da ultrapassagem dos limites transgredindo leis, expondo seu inconformismo e afirmando sua individualidade.
Além dessa fantasia de transgredir normas sociais, o Rush acaba por incorporar outras importantes abordagens escapistas nessa narrativa. Há, por exemplo, o elemento pastoral tecido na música, na medida em que a fuga do protagonista envolve uma saída da cidade ou subúrbio em direção ao interior. As sensações cobiçadas por ele não estão somente ligadas à velocidade e risco, mas também por um desfrute do sol, do ar perfumado interiorano, da paisagem montanhesa e por uma tranquila fogueira ao lado do seu tio. A ação acontece em um ambiente afastado da cidade com a viagem à casa de campo, mas com uma inteligente sobreposição de ficção científica. Complementando o cenário, há o sentimento de nostalgia com esse antigo carro, e o flerte do motorista com a liberdade acaba por representar também uma espécie de comunhão com o passado, um tipo de alivio por remontar uma época mais nobre antes das sufocantes restrições.
O conselho da banda pelo abandono de crenças superficiais é muitas vezes mais memorável nessas histórias idealizadas do que em qualquer apelo direto. O conto de desobediência "Red Barchetta" é um grande exemplo. A sintonia rítmica ecoa a viagem, e o fato do velho tio ter guardado um antigo automóvel para o sobrinho traz uma mensagem agradável sobre a beleza e o cuidado interpessoal de relacionamentos íntimos. O sucesso do narrador em escapar daqueles que lhe negam a liberdade é um triunfo célebre. O desbastar de ideias arcaicas, mal adaptadas ou até mesmo boas ações que foram longe demais encarna sua própria fonte de alegria. Tais doutrinas podem fluir a partir dos governos, família ou religiões e não devem ser mantidas como demasiadamente sagradas para se desafiar, e "Red Barchetta" consegue abarcar essa esfera atraente de incentivo à independência de espirito, também enfatizando a importância da ação.
© 2015 Rush Fã-Clube Brasil
GUITAR CENTER CATALOG. "Guitar Center Talks With Geddy Le". September 2001.
RUSH BACKSTAGE CLUB NEWSLETTER. "Rush - Presto / By Neil Peart". March 1990.
PERIAH, Jefrey L. "The Different Stages of Rush". Guitar Shop. March 1999.
RICHARDS, B. "Interview With Geddy Lee - Telephone Interview With Bob Richards". WPHD Buffalo.
REDBEARD. "Moving Pictures - In The Studio". In The Studio With Redbeard. Show #28. Week of January 2, 1989.
FOSTER, Richard S. "The Inspiration Behind "Red Barchetta". Road & Track, November, 1973.
HARTLAUB, P. "Driveless Cars and Red Barchettas: Did Rush Predict a Google-Controlles Future?". Sfgate.com. June 4, 2014.
BERTI, J. Rush and Philosophy: Heart and Mind United (Popular Culture and Philosophy). Chicago: Open Court, 2011.
McDONALD, C. Rush, Rock Music, and the Middle Class - Dreaming in Middletown. Canada: Profiles in Popular Music, 2012.
PRICE, Carol S. PRICE, Robert M. "Mystic Rhythms: The Philosophical Vision of Rush". Borgo Press, 1999.
TELLERIA, R. "Merely Players Tribute". Quarry Music Books, 2002.
"Red Barchetta" expõe de imediato os traços do Rush renovado, funcionando como uma espécie de trilha sonora iluminada, arejada e inspiradora que deságua sensações que vão além da música. A partir de harmônicos iniciais hipnóticos e inconfundíveis, a composição se desdobra cada vez mais envolvente - sua dinâmica, sem esforço, remete ao veículo em movimento, exibindo fortes características cinematográficas e mergulhando o ouvinte em sua trama repleta de senso de liberdade e juventude. É praticamente impossível não se emocionar ao imaginar os cenários da canção, uma jornada repleta de nostalgia e harmonia, um passeio rural em um carro dos sonhos.
Com a letra fluindo em perfeitamente entrelaçada à música, a história retrata uma realidade onde os automóveis tradicionais são terminantemente proibidos, utilizando tons variados com a graça do cinema. A música progressiva produzida pelo Rush funciona aqui em sua mais alta ordem, combinando elementos que proporcionam toda a excelência técnica nesse propósito.
"Essa foi a intenção em 'Red Barchetta', a de criar uma composição que fosse bem vívida, para que você pudesse sentir tudo aquilo caso parasse para prestar atenção na letra e nas ações", explica Alex Lifeson. "Ela se torna um filme, e acho que funcionou muito bem, sendo bem-sucedida nessa intenção. É algo que tentaremos continuar, nos tornando um pouco mais visuais em nossa música. Essa, em particular, foi muito satisfatória, sempre foi uma das minhas favoritas - provavelmente minha favorita do álbum. Gosto de como as partes dela se costuram, gosto das mudanças e da melodia da canção. Adoro sua dinâmica: a maneira como abre com os harmônicos, criando toda aquela atmosfera, passando para a seção mediana onde grita bastante, na qual você se sente em um carro aberto com a música sempre muito vibrante e tocante. E então a canção termina como começou, com aqueles ares tranquilos que lhe devolvem ao chão levemente. Ela te apanha para a coisa toda e te deixa no próximo ponto".
"Enquanto trabalhamos nesse disco, tentávamos coisas novas e diferentes", continua Alex. "Mudamos a forma de abordagem das composições e de sua apresentação. Estávamos fazendo canções mais compactas, como 'Red Barchetta'. A estrutura dessa melodia foi ótima, tornou-se quase visual com você podendo ver uma corrida de carros. E, melodicamente, ela conta a história muito bem".
"Fiquei muito orgulhoso dessa canção", diz Geddy Lee. "Nós a adoramos desde o início. Ela tem uma ótima dinâmica do começo ao fim e com todos os elementos de uma criação do Rush. Traz um bom ritmo acelerado e momentos mais calmos, e também Alex em seu pranto na guitarra. Tem uma dissonância controlada nos riffs, que vieram como um erro quando eu e Alex estávamos nas seções de riffs pesados. Certas notas que fazíamos não eram para serem tocadas juntas, mas tudo parecia funcionar. A interação entre baixo e guitarra veio de fato no Moving Pictures, e 'Red Barchetta' é um excelente exemplo".
"[Moving Pictures] é uma espécie de consolidação", reforça o baixista. "Se você olhar para o disco de forma objetiva, ele é bem diferente de Permanent Waves. É complexo, uma espécie de salto à frente".
"Red Barchetta" é embalada por melodias agradáveis aliadas à uma performance vigorosa, digna do power-trio no auge de sua força e criatividade. Se em "2112" a guitarra havia sido banida pelos sacerdotes, algo similar acontece nessa faixa - dessa vez com um carro. Surpreendentemente, a canção foi gravada em take único, rememorando liricamente a veia sci-fi amplamente utilizada na década anterior. "Tomamos ciência da natureza ambiciosa daquele projeto de maneira dolorosa", lembra Peart. "Tivemos que trabalhar duro por muitos dias para capturar os sons e a performance correta para cada música. A única exceção, sem razão aparente, foi 'Red Barchetta', gravada em um único take. Esse fato acabou surpreendendo a nós mesmos".
"Red Barchetta" combina cirurgicamente áreas temáticas como o pastoril, o onírico, a nostalgia, a tecnologia e a transgressão, mesclando perfeitamente o amor de Peart pelo movimento, pelas máquinas e pela ficção científica. Embora Lifeson utilize apenas guitarras na canção, um timbre próximo ao acústico é trazido nos marcantes harmônicos introdutórios, além da escolha por sonoridade mais limpa nos versos. Liricamente, a canção persegue, de certo modo, a proposta da anterior "Tom Sawyer", continuando a refletir a tônica das ideias habitualmente exploradas pela banda em suas construções. Temos, nesse conto musical, uma espécie de observação sobre as regras forçadas em prol do coletivo, com a tecnologia, nesse caso, refletindo o espírito da natureza, da habilidade, da criatividade e da ousadia inerente ao ser humano. A vitalidade do protagonista é suplantada pelo peso da própria modernidade e do nivelamento e, como em "2112" (de 2112, de 1976) e "The Trees" (de Hemispheres, 1978), "Red Barchetta" traz o aviso de que perdemos quando concedemos aos governos o direito de impor o bem comum.
O Rush concebe nessa faixa uma canção em narrativa, e tal característica ainda seria explorada em outros momentos. Destacadamente, "Red Barchetta" retoma alguns dos elementos do passado, porém sua história também expõe uma nova postura que seria adotada pela banda dali para frente: uma abordagem mais cotidiana e escapista.
O conto "A Nice Morning Drive", de Richard Foster, mostra um cenário futurista similar ao utilizado na canção, onde velocidade e fuga são prazeres perigosos - carros (e a liberdade que estes implicam) são proibidos. Com as normas de segurança se tornando cada vez mais rigorosas, essas acabam forçando massivamente uma evolução dos automóveis para os chamados Modern Safety Vehicles (Veículos Modernos Seguros), ou simplesmente MSVs, capazes de suportar impactos de oitenta quilômetros por hora sem danos ao motorista. Consequentemente, os condutores dos MSVs se tornam menos preocupados com a segurança e mais agressivos, se chocando intencionalmente com carros mais antigos e menores, o que acaba incitando um tipo de esporte bizarro para alguns deles. Enquanto trabalhava no álbum, Peart fez várias tentativas de contato com Foster, mas a revista Road & Track não dispunha do seu endereço atualizado, tendo em vista que o conto havia sido escrito cerca de oito anos antes. Mesmo assim, a banda decidiu mencionar no encarte a inspiração e seu autor com uma nota na letra da canção. Felizmente, décadas mais tarde, os dois se encontraram pela primeira vez, no estado da Virgínia Ocidental.
"Em 1972, eu estudava para as provas da minha pós-graduação", lembra Foster. "De repente, me ocorreu a ideia para um conto de ficção científica, e prontamente comecei a escrever. A história, intitulada 'A Nice Morning Drive', foi situada em um futuro distante (1982!), e envolvia os Modern Safety Vehicles (MSVs) que poderiam danificar os carros mais antigos - carros com pára-choques de segurança que não permitiam que ocorresse danos nos mesmos. Com uma mistura de esperança e presunção, enviei o mesmo à revista Road & Track, e eles decidiram publicá-lo! Me pagaram duzentos dólares, o que representava muito dinheiro na época, especialmente para um estudante de pós-graduação duro. O artigo foi publicado na edição de novembro de 1973".
"Neil Peart, que se juntou ao Rush alguns anos antes e que tem sido um entusiasta de carros esporte durante toda a vida leu a história", continua. "Avançando a 1980, ele decidiu escrever uma canção para a banda em uma linha de ficção científica inspirada nesse artigo da R&T. Ele substituiu o carro em sua história pelo seu favorito de todos os tempos, uma Ferrari 166MM, ao invés do MGB que utilizei (embora ele próprio já tivesse sido dono de um MGB). Ele também retratou um cenário futurista mais extremo, envolvendo um confronto homem-máquina com aqueles que haviam proibido os carros em um mundo totalitário".
"Red Barchetta" descreve um futuro onde muitas classes de veículos foram proibidas pela chamada "Lei do Motor" ("Motor Law"). O tio do narrador manteve um desses veículos considerados ilegais (o esportivo vermelho do título) preservado por pouco mais de cinquenta anos, escondido em sua propriedade no interior. Todos os domingos, o jovem protagonista segue para o local escondido em um trem de carga, a fim de dirigir o automóvel pelo campo. Em um desses passeios, ele se depara com um veículo a ar comprimido de liga reluzente, este que inicia uma perseguição ao longo das estradas interioranas. Um segundo veículo do mesmo tipo se junta à corrida, que continua até o protagonista conduzi-los a uma ponte muito estreita para os carros a ar, a qual ele atravessa sem problemas - conseguindo assim conter seus algozes. Após a aventura, a canção termina com o jovem retornando com segurança à fazenda do tio.
O veículo escolhido, a Ferrari 166 MM, foi produzido de 1947 a 1953. Primeiro carro esporte em série com um chassi da montadora, a 166 ganhou seu nome devido aos 166 centímetros cúbicos de capacidade de cada um dos seus 12 cilindros. A marca MM simboliza a vitória da Ferrari em 1949 na lendária e cruel Mille Miglia, famosa corrida automobilística de longa distância disputada na Itália por 24 edições, de 1927 a 1957. Com velocidade máxima de 220 km/h (possivelmente o carro esporte mais rápido do mundo em sua época), a Barchetta (termo que significa "pequeno barco" em italiano, utilizado na indústria automotiva para carros de dois lugares sem capota) faturou um total de 80 prêmios entre abril de 1948 e dezembro de 1953, incluindo as 24 Horas de Le Mans, em 1949. De acordo com o livro "The Complete Ferrari", de Godfrey Eaton, a pronúncia correta é "Barqueta", tendo Geddy reconhecido mais tarde que pronunciou a palavra incorretamente na canção, após um amigo de raízes italianas lhe ensinar o modo correto.
"Acho que Neil tinha uma Ferrari na época em que escreveu a canção", diz Geddy. "Ele é um grande amante de carros! Ele pensava muito nos carros da Ferrari nesse período e acho que procurou um desses modelos em um livro antigo. Eu e Alex nunca pensamos em letras ou qualquer coisa do tipo. Quanto mais conhecemos o Neil, mais percebemos o imenso conhecimento do idioma inglês e seu interesse pela leitura. Ele é um cara muito diferente de nós - uma pessoa cheia de ideias e bastante descritiva".
"Red Barchetta" traz uma forte gama de imagens - paisagens distintas, sons, cheiro de couro, metal quente e óleo. Trata-se de uma história emocionante de ação e aventura, sendo talvez o exemplo mais claro da ideia central do álbum: a de oferecer canções que funcionem como pequenos filmes. Na história, o herói que desafia a autoridade é mostrado ao lado de efeitos pictóricos extras, como quando Lifeson sola com sua guitarra em delay, a partir do queimar dos pneus no asfalto antes de atravessar um túnel (como retratado no antigo vídeo de Exit...Stage Left). Tais elementos capturam nostalgia, alegria, ação e escapismo em uma viagem emocional perfeitamente paralela à narrativa da canção.
Mesmo com estrutura atípica livre de refrões e composta por versos de climas variados, a música do Rush também expõe breves passagens rock mais simples, onde compassos 4/4 são combinados em frases padronizadas. Em "Red Barchetta", o carro na estrada aberta representa a liberdade do sistema finalmente possível - momentos de glória, vitória e paz interior. Na passagem emocionante que se aproxima da seção de excesso de velocidade sem impedimentos (onde o protagonista comete o seu crime semanal), a música se mostra repleta de toques sincopados que acabam por conduzir o próprio ouvinte e, nos momentos de adrenalina, todos os pequenos componentes são cuidadosamente pensados. A banda, em sua complexidade, traz o texto fixado em uma pontuação musical clássica, mas com uma execução ativa que move e envolve o ouvinte, tanto intelectualmente quanto corporalmente.
Peart escolhe um automóvel como símbolo de liberdade e individualismo em uma sociedade futura que no mínimo é governada por um estado paternalista ou totalitário. O contraponto é pensar na glorificação de um automóvel que se opõe à ideia dos transportes sustentáveis. Portanto, temos nessa canção uma espécie de batalha entre uma regulamentação social e econômica e a liberdade do indivíduo.
Da mesma forma que a história fantástica de "Cygnus X-1", contada nos álbuns A Farewell to Kings (1977) e Hemispheres (1978) - esta percorre grandes distâncias para explorar fenômenos de um mundo misterioso - "Red Barchetta" explora temas cotidianos, a partir de um indivíduo que se distancia para um ambiente diferente do seu de costume.
O cenário remete a uma sociedade orwelliana, descrevendo "Os Olhos" ("The Eyes") como elementos que controlam todos os movimentos das pessoas e a "Cerca" ("The Wire"), que representa a instituição do isolamento e separação. Além disso, "Red Barchetta" menciona o "crime semanal" do protagonista, que se enche de alegria ao experimentar emoções que a alta velocidade e o controle de uma máquina potente podem trazer. Essas sensações são ainda mais realçadas pela poesia que traz a luz do sol, a força do vento e o perfume dos campos. O jovem, claramente, saboreia o despertar de sentimentos estonteantes e eufóricos dessa liberdade reprimida, imagem que acaba por estampar, inevitavelmente, porções derivativas das obras de George Orwell ("1984") e dos pensamentos de Ayn Rand, categoricamente já visitados em outras composições da banda.
"Red Barchetta" traz o inconfundível jogo de prazer e da vaidade jovem, com suas seções representando de maneira perfeita o que muitos chamam de "canção de estrada" - viagens existenciais materializadas pela liberdade de uma estrada aberta. Propondo essa fantasia juvenil, que traz o carro como símbolo de transgressão e liberdade, a composição exibe, de certa forma, o ritual adolescente de aprender a dirigir, que se associa à redução da dependência parental que, nos casos de jovens como foram os integrantes do Rush (criados em subúrbios), pode representar uma ferramenta de libertação claustrofóbica desses pequenos bairros. Essa romantização acaba se aproximando de muitos jovens que experimentam os mesmos cenários, fato que se tornaria recorrente nas criações seguintes dos canadenses.
Para a canção, não seria escolhido qualquer carro para substancializar tal símbolo. A Barchetta cede à fantasia masculina de liberdade, além do poder, risco e transgressão, resumindo independência e individualismo, elementos sempre abordados pelo Rush em suas canções. Por seu tamanho compacto e a inexistência de um banco traseiro - com espaço para um único passageiro - esses veículos podem significar a solidão e o poder a serem exibidos publicamente. O carro esporte é projetado para transgredir, para quebrar as leis em sua capacidade de exceder limites normais e seguros de uma viagem em uma margem considerável. Lidando com o veículo, o motorista se sente excepcional, sem estar totalmente vinculado às regras da sociedade. Definindo "Red Barchetta" nesse futuro controlado, a máquina toma a condição de um tipo de crime. Novamente, a transcendência através da fantasia escapista é conseguida: o protagonista experimenta a emoção da velocidade e da ultrapassagem dos limites transgredindo leis, expondo seu inconformismo e afirmando sua individualidade.
Além dessa fantasia de transgredir normas sociais, o Rush acaba por incorporar outras importantes abordagens escapistas nessa narrativa. Há, por exemplo, o elemento pastoral tecido na música, na medida em que a fuga do protagonista envolve uma saída da cidade ou subúrbio em direção ao interior. As sensações cobiçadas por ele não estão somente ligadas à velocidade e risco, mas também por um desfrute do sol, do ar perfumado interiorano, da paisagem montanhesa e por uma tranquila fogueira ao lado do seu tio. A ação acontece em um ambiente afastado da cidade com a viagem à casa de campo, mas com uma inteligente sobreposição de ficção científica. Complementando o cenário, há o sentimento de nostalgia com esse antigo carro, e o flerte do motorista com a liberdade acaba por representar também uma espécie de comunhão com o passado, um tipo de alivio por remontar uma época mais nobre antes das sufocantes restrições.
O conselho da banda pelo abandono de crenças superficiais é muitas vezes mais memorável nessas histórias idealizadas do que em qualquer apelo direto. O conto de desobediência "Red Barchetta" é um grande exemplo. A sintonia rítmica ecoa a viagem, e o fato do velho tio ter guardado um antigo automóvel para o sobrinho traz uma mensagem agradável sobre a beleza e o cuidado interpessoal de relacionamentos íntimos. O sucesso do narrador em escapar daqueles que lhe negam a liberdade é um triunfo célebre. O desbastar de ideias arcaicas, mal adaptadas ou até mesmo boas ações que foram longe demais encarna sua própria fonte de alegria. Tais doutrinas podem fluir a partir dos governos, família ou religiões e não devem ser mantidas como demasiadamente sagradas para se desafiar, e "Red Barchetta" consegue abarcar essa esfera atraente de incentivo à independência de espirito, também enfatizando a importância da ação.
© 2015 Rush Fã-Clube Brasil
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