SWEET MIRACLE



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EARTHSHINE  SWEET MIRACLE  NOCTURNE


SWEET MIRACLE

I wasn't walking on water
I was standing on a reef
When the tide came in
Swept beneath the surface
Lost without a trace
No hope at all
No hope at all

Oh - sweet miracle
Oh - sweet miracle
Of life


I wasn't walking with angels
I was talking to myself
Rising up to the surface
Raging against the night
Starless night

Oh - sweet miracle
Love's sweet miracle
Of life

Oh salvation
Oh salvation


I wasn't praying for magic
I was hiding in plain sight
Rising up from the surface
To fly into the light
DOCE MILAGRE

Eu não andava sobre a água
Estava de pé num recife
Quando a maré subiu
Arrastado para abaixo da superfície
Perdido sem pistas
Nenhuma esperança
Nenhuma esperança

Oh - doce milagre
Oh - doce milagre
Da vida


Eu não estava andando com anjos
Estava conversando comigo mesmo
Subindo para a superfície
Furioso com a noite
Noite sem estrelas

Oh - doce milagre
O amor é o doce milagre
Da vida

Oh salvação
Oh salvação


Eu não estava rezando por mágica
Estava me escondendo à vista
Subindo da superfície
Para voar para a luz


Música por Geddy Lee e Alex Lifeson / Letra por Neil Peart


O milagre racional

A décima faixa de Vapor Trails é reservada à fortemente emocional "Sweet Miracle", uma sublime homenagem à força do espírito humano. Com uma notável combinação estrutural que mescla peso e sutilezas, o trio consegue operar um cenário extremamente melódico e tocante, destilando proporções dramáticas e vívidas bastante inspiradoras.

"Sweet Miracle" é a canção mais breve do álbum, sendo lançada como o terceiro e último single em 23 de setembro de 2002. Contando com apenas três minutos e quarenta segundos, ela integra o rol das pequenas e raras extensões para os moldes comuns à obra do Rush. Explodindo em uma introdução pesada, a composição é marcada de início por um belíssimo dueto entre linhas de baixo e licks robustos de guitarra, estes que dão lugar a versos com harmonias exuberantes envolvidos por notas doces e percussão passional. A voz sóbria de Geddy Lee orquestra a construção em constante comoção, passeando por padrões maravilhosos e permeando estruturas que prezam, acima de tudo, por elementos carregados de ótimas expressões visuais. Seus refrões marcantes soam como uma prece, e seu trecho médio reserva uma intensa detonação musical, onde vocalizações brilhantes são aliadas à poderosas paredes de guitarras em bases criativas e dinâmicas. Seu encerramento traz uma nova alternância entre o leve e o pesado, quando os versos se rompem com os refrões e overdubs vocais adornam um final brilhante e repentino.

"Acho que 'Sweet Miracle' foi a segunda canção que escrevemos para Vapor Trails", lembra Geddy. "Ela veio desde as primeiras sessões de composição, e apenas aconteceu. A letra era muito comovente, e a melodia simplesmente nasceu em mim".

"Ela traz linhas de baixo prudentes. Trata-se de uma das canções mais simples e tristes do disco, apresentando apenas uma linha de baixo! Tudo começou com os versos: toquei acordes e escrevi a melodia junto com eles. Em seguida, Alex acrescentou suas partes. Para certas canções, nas quais a letra é atmosférica exigindo o humor certo, não há opções: é preciso apenas compor a melodia vocal e moldar os acordes de baixo em torno da mesma".


Liricamente, trata-se de uma das composições mais inspiradoras do disco, devido à sua transparência sobre a jornada pessoal de Neil Peart pelas profundezas do desespero - mostrando também um pouco da sua nova vida com um amor recém-descoberto. Certamente, temos nessa construção a mais profunda das canções autobiográficas pós-tragédias da banda, com Peart indicando, através de uma narrativa em primeira pessoa, o desalento e reafirmação do valor inexprimível da vida.

"Canções como 'Sweet Miracle' refletem a alegria da minha nova vida", revela o baterista.

Mesmo com sua curta estrutura, "Sweet Miracle" se mostra bastante reveladora. Contando com três versos breves, ela desenha os estágios definidos da recuperação de Peart dos seus dramas pessoais. A partir da aplicação de figuras novamente baseadas em elementos naturais, recebemos um dos traços mais marcantes da sua postura como letrista em Vapor Trails, dessa vez fazendo uso das profundezas e da superfície do mar para refletir etapas primordiais do seu processo de cura.

No primeiro verso, é explícito o sentimento de completo desespero. O baterista ainda buscava forças para se recuperar da perda de sua jovem filha Selena ("I wasn't walking on water / I was standing on a reef") quando recebeu, apenas onze meses depois, mais um duro golpe de outra tragédia brutal: a morte de sua esposa Jackie ("When the tide came in"), acontecimento que o deixou, indubitavelmente, em perdido e sem esperanças ("Swept beneath the surface / Lost without a trace / No hope at all").

No segundo verso, Peart revela claramente a sua raiva, e talvez esse seja o trecho que mais retrate sua solitária jornada de cura em cima de sua moto. Ele reforça que não conversava com anjos em suas andanças ("I wasn't walking with angels"), o que sugere a negação de qualquer tipo de busca espiritual ou metafísica (posicionamento já abordado nas faixas "The Stars Look Down" e "How It Is"), mas sim a afirmação de um processo de reencontro com sua própria essência ("I was talking to myself"). O músico tentava se recuperar agarrando o que tinha de mais valioso e inexplicável: a pequena chama interior que o mantinha vivo e em movimento, sempre acreditando que essa seria a força que o ergueria novamente ("Rising up to the surface"). Porém, naqueles momentos, seu maior e mais implacável adversário era o próprio desencantamento com a vida ao seu redor ("Raging against the night / Starless night"), contra o qual lutava diariamente, buscando deixar sua escura e assustadora profundeza abissal para chegar à superfície.

Já no terceiro verso, o letrista ainda demonstra que a combinação de sua postura revestida de racionalidade, força interior e coerência ("I wasn't praying for magic") com seu retiro solitário por diversas cidades e realidades ("I was hiding in plain sight") foram fundamentais para o seu objetivo. Aqui nos deparamos com o que podemos chamar de real aceitação, reencontro e superação ("Rising up from the surface / To fly into the light").

A chave da canção e da vida de Peart se encontra no trecho intermediário e também nos refrões. Conforme abordado nas imediatamente anteriores "Secret Touch" e "Earthshine", sua recuperação se acelerou após o encontro com a fotógrafa Carrie Nuttall, por quem se apaixonou ("Love's sweet miracle of life"). A ponte da música se aproxima de uma pura transcendência estética que relata, através da voz gloriosa de Lee, a própria subjetividade do autor em um belíssimo falsete hinário ("salvation"). "Sweet Miracle" enfatiza nas entrelinhas que coisas maravilhosas podem acontecer com qualquer pessoa, apresentando a mesma força e significado de um milagre. Pode a consciência trágica sempre encontrar salvação no outro? O amor é apresentado como uma virtude na tradição cristã, e ele poderia ser abordado por um filósofo cético e secular como Peart? Aqui, de fato, o nobre sentimento representa a saída.

No tarô, a carta utilizada para "Sweet Miracle" é um As de Copas. De forma geral, sugere um melhoramento das relações amorosas, seja com o parceiro ou com um novo e empolgante amor. O interessante é que também representa a intuição de conseguir distinguir pessoas especiais na multidão, e uma busca por aceitar o que o mundo tem para oferecer. Ampliando o círculo de convivência, as chances de receber oportunidades de relacionamentos são bem maiores. Traduz o deixar a mente e mover-se para o coração.

"Vapor Trails" acaba se tornando um retrato filosófico da vida pós-tragédias de Neil Peart. As desgraças quase o derrotam, mas seu impulso primordial de vida e grande otimismo o levaram à sobrevivência. Ao invés de considerações niilistas, a resposta adaptativa final para o músico se afirma, ironicamente, numa espécie de fé secular baseada na esperança e no amor. Parece um desfecho muito simples para o grande baterista filósofo, mas essa alegria profunda, mesmo que superficialmente singela, mostra sua face arrebatadora. No livro Ghost Rider, Peart afirma que, sem esse encontro com o amor, o mundo jamais teria ouvido Vapor Trails. Assim como o grande 2112 não teria existido sem a coragem, integridade e a autoestima do Rush, Vapor Trails não teria existido sem o amor por Carrie.

© 2016 Rush Fã-Clube Brasil

CORYAT, K. "Track By Track: Geddy Lee On Rush's Vapor Trails". Bass Player. July 2002.