NOCTURNE



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NOCTURNE

Did I have a dream?
Or did the dream have me?


Set off on a night-sea journey
Without memory or desire
Drifting through lost latitudes
With no compass and no chart

Flying through hallucination
Distant voices, signal fires
Lighting up my unconscious
And the secret places of the heart

Dream - Temporary madness
Dream - A voice in the wilderness
Dream - Unconscious revelations
The morning says, the answer is yes


Floating through a darkened mirror
Deep reflections in disguise
Soaring through lost altitudes
Without wonder, without fear

Symbols on a field of visions
Behind the curtain of sleeping eyes
On the instant of waking
Another world of dreams appears

Dream - A walk in the wilderness
Dream - Unconscious recreation
The morning says, the answer is yes
NOTURNO

Eu tive um sonho?
Ou o sonho me teve?


Parta numa viagem noturna no mar
Sem memória ou desejo
À deriva em latitudes perdidas
Sem bússola e sem mapas

Voando através da alucinação
Vozes distantes, sinalizadores
Iluminando meu inconsciente
E os lugares secretos do coração

Sonho - Loucura temporária
Sonho - Uma voz na imensidão
Sonho - Revelações inconscientes
A manhã diz que a resposta é sim


Flutuando por um espelho escurecido
Reflexões profundas disfarçadas
Sobrevoando altitudes perdidas
Sem surpresa, sem medo

Símbolos num campo de visões
Atrás da cortina de olhos que dormem
No instante do despertar
Outro mundo de sonhos aparece

Sonho - Uma passeio pela imensidão
Sonho - Recreação inconsciente
A manhã diz que a resposta é sim


Música por Geddy Lee e Alex Lifeson / Letra por Neil Peart


As fascinantes relações estabelecidas pelos sonhos

"Nocturne" é a décima primeira canção de Vapor Trails, uma composição envolta por ares enigmáticos e progressivos que a definem como uma das mais intrigantes e obscuras peças não somente do disco, mas de toda a carreira do Rush.

"Considero essa canção a mais experimental em Vapor Trails", diz Neil Peart. "Uma vez que tínhamos algumas composições que gostávamos já terminadas, as seguintes começaram a ficar um pouco mais estranhas. A ousadia cresce na confiança (o que os gregos antigos chamavam de 'húbris', eu acho)".

Reforçando um dos moldes mais notáveis no disco, "Nocturne" mescla versos melódicos com refrões de muito peso e energia. A faixa traz em seu instrumental elementos figurativos belíssimos, estes que se entrelaçam perfeitamente ao seu apelo lírico. Percussão variada e sensível sustentando cada passagem; linhas de baixo sempre pulsantes e frenéticas; guitarras construídas ao sabor de cada movimento; vocais que configuram todo o drama, inquietude e angústia, mergulhando o ouvinte numa viagem ao subconsciente e ao mundo dos sonhos. Novamente, o Rush consegue desenhar com maestria o cenário musical perfeito para apresentar outro tema bastante interessante, propondo como cerne o intrigante paradoxo, "Did I have the dream or did the dream have me?" ("Eu tive um sonho ou o sonho me teve?").

"Nocturne foi uma das últimas canções que escrevemos para Vapor Trails", relembra Geddy Lee. "Havia um grupo de aproximadamente cinco ou seis composições que nasceram durante as duas semanas de jams que considero as melhoras que eu e Alex já tivemos. Adoro essa canção, de verdade. Gosto muito do padrão de bateria, especialmente do início. Por outro lado, cantar as canções desse disco foi algo difícil para mim. Muitas ideias, idas e vindas, sempre tentando pegar uma experiência pessoal e aceitá-la, além de compreendê-la e querer expressá-la de forma que me sentisse bem cantando - o suficiente para que outra pessoa não estranhasse minha intimidade. Essa canção fala sobre perguntas que você pode responder subconscientemente em seus sonhos, sem perceber".

"Fiquei muito satisfeito com a forma como terminamos essa, nos estendendo um pouco mais. Tinha meus três canais de baixo ligados em três saídas no console, mas, por algum motivo, direcionei um dos canais para a saída errada, numa trilha normalmente reservada aos vocais. Tivemos, portanto, esse reverb profundo que nos pareceu muito legal, e decidimos compor a canção em torno desse som. Depois, para a parte intermediária, compus uma linha de baixo bem grave produzindo acordes, e uma terceira fazendo o reverb".


A frase de abertura é espelhada por um grande ataque de direções musicais variadas. Conforme a própria natureza dos sonhos, sua provocante incoerência expõe o domínio por trás do método. As palavras profundas cantadas por Geddy trazem sensações arrepiantes, e a condução científica das guitarras seguem delineando todo o desenvolvimento. Incitando revelações inconscientes, "Nocturne" se torna um novo exercício de auto-indulgência para Alex Lifeson, como na clássica "La Villa Strangiato" (de Hemispheres, 1978), que foi inspirada em pesadelos.

Similar às canções "The Enemy Within" (de Grace Under Pressure, 1984) e a complexa "Double Agent" (de Counterparts, 1993), na qual trazia como tema as complementaridades do consciente e do inconsciente humano combinando influências de Carl Jung, Corey Ford, Graham Greene e T.S. Eliot, em "Nocturne" o Peart olha novamente para a interioridade propondo uma elaboração simbólica com motivações baseadas num artigo chamado What Do Dreams Want? (O Que os Sonhos Querem?), redigido em 2000 pelo psicólogo e escritor norte-americano Marc Ian Barasch, abordando novamente os mistérios do corpo humano e da mente.

"Um artigo na revista Utne Reader chamado 'What Do Dreams Want?' contribuiu para minhas ideias em 'Nocturne', assim como o mantra enigmático 'The way out is the way in' de 'Secret Touch'. Fui atingido pela abordagem do psicólogo, que analisava e interpretava sonhos 'sem memória ou desejo'. Fiquei impressionado".

Em seu artigo, Barasch relata uma série de pesadelos vívidos que o levaram a suspeitar de que algo terrivelmente errado estava acontecendo com seu organismo. Após uma série de consultas médicas, foi diagnosticado com um tumor maligno na glândula tireoide. Segundo seu testemunho, uma voz lhe dizia em seus sonhos, "Você tem vivido na parte exterior do seu ser - a saída é a entrada", o que acabou lhe ajudando na tomada de decisões. Após o tratamento, decidiu escrever um livro chamado Healing Dreams, oferecendo ponderações sobre as possíveis formas de comunicação estabelecidas pelos sonhos, afirmando que estas podem prover informações importantes para nós mesmos.

Combinando o tema ao momento incerto e sombrio que Neil Peart vivia após perder sua filha e esposa, é possível compreender que o baterista identificou seu próprio drama nos estudos de Barasch. Ele também buscava (de forma mais inconsistente do que consciente) a sua própria cura, mantendo-se incessantemente em movimento ao longo de sua extensa jornada. Em The Healing Path, livro escrito em 1992, Barasch trata sobre pessoas que haviam conseguido resultados de cura além de suas probabilidades - pacientes que se dedicaram a vários procedimentos e tratamentos e que apresentavam algo em comum: todos decidiram olhar para sua doença como única, considerando eles próprios como únicos e decidindo encontrar um caminho para o restabelecimento; atitudes que inspiraram seus próprios entusiasmos, crenças e mecanismos de enfrentamento. Muitos desses pacientes passaram a acreditar que voltaram à versões anteriores de si mesmos, retomando um tempo pretérito. Segundo o psicólogo, aqueles que conseguem decidir fazer da doença uma jornada pessoal estão mais propensos a organizar seus próprios recursos, tanto internamente quanto externamente, além de respeitarem regimes de tratamento de forma mais apropriada. Seria a vontade de tornar a doença um catalisador de transformações, ao invés de simplesmente perseguir um modelo habitual de cura.

Em seu segundo livro, intitulado Remarkable Recovery (1995), Barasch traz relatos de suas pesquisas sobre casos de remissão completa e espontânea (termo utilizado em medicina para designar a fase da doença em que não há sinais de atividade, mas que não é possível concluir como cura), onde não foram encontrados quaisquer métodos comuns ou substâncias que os pacientes tivessem feito uso. Porém, foi percebido algo que ele e os demais profissionais chamaram de congruência: uma verdadeira aproximação entre interior e exterior. Curiosamente, outro pesquisador holandês também observou casos de remissão que surgiram com descrições semelhantes, classificando-os como "uma congruência entre as mais fortes emoções, cognições e comportamento". Se o câncer pode ser entendido como uma forma de entropia ou um distúrbio crescente em um sistema, então seria possível dizer que as pessoas, de alguma forma, voltaram a se alinhar com sua essência principal - de corpo e alma.

"Será que essa situação contribui para remissão, ou é apenas um subproduto ao passar por uma jornada de mudança de vida pela cura?", questiona Barasch. "Não observamos o processo em curso, mas contávamos com o testemunho subjetivo das pessoas após o fato, como em estudos retrospectivos. Os padrões são muito interessantes. Eles se parecem inconsistentes talvez devido ao processo de cicatrização, que toma formas diferentes de acordo com a personalidade das pessoas. Definitivamente, não foi o caso de se tornarem mais serenas e espirituais. Algumas se tornaram inclusive mais desagradáveis, escandalosas e emocionais, e outras passaram a abordar as coisas de maneira muito mais racional. Nossa principal descoberta é que essas pessoas curadas tenderam a trabalhar no sentido de conseguirem melhorar em todas as frentes, encontrando apoio social, fé, propósito e emoções profundas, fazendo coisas que amavam e geralmente escolhendo um estilo de vida mais saudável".

Barasch também sugere uma definição para o conceito de alma, afirmando que "não é algo que pula do seu corpo como um coração alado quando você morre, mas um processo de integração - uma forma autêntica de vida que engloba todas as polaridades: intelecto e emoção, corpo e mente, social e particular. Trata-se de uma intimidade que os taoistas chamam de 'o inferior, o obscuro e o pequeno', e também a abertura de um grande quadro (que os praticantes zen chamam de 'a grande mente') no qual o ego e suas necessidades não estão comandando o show. Na maioria das culturas, a alma é entendida como múltipla e variada, e não algo fixo, singular e eterno".

O psicólogo afirma ainda que a alma e a imaginação estão intimamente ligadas. As imagens das doenças adquiridas (geralmente muito pessoais e fantasiosas) mostram-se em sonhos sugerindo uma negociação com a alma, atacando emoções e causando um grande impacto existencial. A primeira pergunta que surge após um diagnóstico é "Porque eu?", conduzindo o indivíduo diretamente para a filosofia ou religião. Dessa forma, novas abordagens para doenças e curas passam a trazer nomes compostos, como a chamada medicina biopsicossocial, sendo em si um eco de modelos médicos anteriores que ainda existem em sociedades tribais, onde enfermidades físicas são vistas como parte de uma constelação maior de desequilíbrio - uma perda de harmonia com reinos espirituais, sociais, ancestrais e naturais.

Por outro lado, os efeitos da mente sobre o corpo não podem ser refutados. "Sabemos disso de forma instintiva: quando nos sentimos envergonhados, um fenômeno puramente psicológico, ficamos corados - uma função puramente física do fluxo sanguíneo", explica Barasch. "Quando estamos ansiosos, sentimos desconfortos em nosso estômago e, quando estamos em luto, experimentamos apertos na garganta, com o fluxo de sangue e histamínicos neurais sendo afetados. Claramente, estamos orquestrando a farmacologia do cérebro pela maneira como percebemos e reagimos às coisas, através das ressonâncias emocionais de eventos diários. Os hormônios que estamos marinando não podem deixar de ter um efeito sobre o sistema imunológico e, portanto, nos processos de doenças específicas e nas cicatrizações. É o que geralmente chamamos de 'cofator' - contributivo ao invés de causal".

Contudo, percebemos que Neil Peart se debruçou sobre os estudos de Barasch para tentar recontar seu misterioso processo interno de retomada da vida, sempre envolto por momentos e sensações de desespero e dor que o assolaram após suas tragédias pessoais. Como se não bastasse se revelar por fora, o músico também teve a preocupação de expor o que sentia internamente, tentando detalhar o sentimento que o levava a continuar em movimento, exercitando consigo mesmo seu talento em descrever elementos e características inerentes ao ser humano.

"Bem, acho que 'Nocturne', 'Ghost Rider', 'Sweet Miracle e até mesmo 'Secret Touch' se relacionam com algum tipo de realização", explica Geddy. "Acho que todas estão enraizadas na experiência de Neil, estas que falam sobre suas dificuldades e as formas que encontrou para sair delas".

"Foi uma declaração importante a ser fazer. Estávamos de volta, celebrando algo aqui - especialmente para Neil. A fúria em sua forma de tocar bateria nas faixas era a coisa certa a se fazer".


A carta do tarô que reflete "Nocturne" é a Lua, esta que representa a inteligência instintiva, o mundo sensível, os ciclos vitais, instintos, imaginação, reflexão e reflexos, aparências e ilusões. Sugere o momento de reavaliar a direção na busca do retorno à fonte, a experimentação, uma penosa conquista da verdade e a instrução pela dor - trabalho cansativo mas necessário. Além disso, propõe uma vidência passiva, receptividade, sensibilidade e lucidez. Navegação e mudança. Inconstância, insegurança e medo. Irracionalidade, fantasias e penumbra. Sentimentos conturbados e passionais.

© 2016 Rush Fã-Clube Brasil

CANTIN, P. "Peart Reveals Literary Inspirations Behind Rush Album". Jam!Showbiz, May 31, 2002.
CONSIDINE, J. D. "Rush: Chronicles". Guitar Legends / Rush Special Collector's Edition. December 2007.
CORYAT, K. "Track By Track: Geddy Lee On Rush's Vapor Trails". Bass Player. July 2002.
MILLIKEN, J. "Canada's Rock Royalty - From Boyhood Basement Band To The Top". Goldmine. June 13, 2003.
PEART, N. "Behind The Fire - The Making Of Vapor Trails". The Vapor Trails Tour Book. 2002.