A FAREWELL TO KINGS



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SOMETHING FOR NOTHING  A FAREWELL TO KINGS  XANADU


A FAREWELL TO KINGS

When they turn the pages of history
When these days have passed long ago
Will they read of us with sadness
For the seeds that we let grow
We turned our gaze
From the castles in the distance
Eyes cast down
On the path of least resistance

Cities full of hatred
Fear and lies
Withered hearts
And cruel, tormented eyes
Scheming demons
Dressed in kingly guise
Beating down the multitude
And scoffing at the wise


The hypocrites are slandering
The sacred halls of Truth
Ancient nobles showering
Their bitterness on youth
Can't we find
The minds that made us strong
Can't we learn
To feel what's right and wrong

Cities full of hatred
Fear and lies
Withered hearts
And cruel, tormented eyes
Scheming demons
Dressed in kingly guise
Beating down the multitude
And scoffing at the wise
Can't we raise our eyes
And make a start
Can't we find the minds
To lead us closer to the Heart
UM ADEUS AOS REIS

Quando eles virarem as páginas da história
Quando esses dias já tiverem passado há muito tempo
Será que lerão sobre nós com tristeza
Pelas sementes que deixamos germinar?
Viramos nossos olhares fixos
Dos castelos ao longe
Olhos abatidos
No caminho de menor resistência

Cidades cheias de ódio
Medo e mentiras
Corações secos
E olhos cruéis, atormentados
Demônios ardilosos
Vestidos em disfarces régios
Derrotando a multidão
E zombando dos sábios


Os hipócritas estão difamando
Os salões sagrados da Verdade
Nobres antigos despejando
Sua amargura na juventude
Será que não podemos encontrar
As mentes que nos fizeram fortes?
Será que não podemos aprender
A reconhecer o que certo e errado?

Cidades cheias de ódio
Medo e mentiras
Corações secos
E olhos cruéis, atormentados
Demônios ardilosos
Vestidos em disfarces régios
Derrotando a multidão
E zombando dos sábios
Será que não conseguimos levantar nossos olhos
E começar?
Será que não conseguimos encontrar os propósitos
Para nos levar para mais perto do Coração?


Música por Geddy Lee, Alex Lifeson e Neil Peart / Letra por Neil Peart


A perpetuação de dramas do passado sob novos disfarces

A Farewell to Kings, quinto álbum de estúdio da carreira do Rush, tem início com a exuberante faixa título. De forma imediata, a banda novamente surpreende ao trazer uma sonoridade que reflete avanços técnicos ainda mais significativos que em seus trabalhos anteriores. Exótica e repleta de detalhes, a imponente canção reflete a continuidade da busca incansável dos músicos em se aprimorarem na criação de obras totalmente impactantes e fantásticas. Pela primeira vez de várias que ocorreriam no decorrer da carreira, eles deixam de seguir a fórmula de um trabalho anterior bem sucedido para experimentar novas direções inexploradas. A bela introdução exprime claramente os sentimentos primordiais do álbum, convidando os ouvintes a olharem com atenção para o passado e, mesmo imersos em uma realidade contemporânea tão desencorajadora, acreditarem na esperança de que o homem atual ainda aprenderá que suas ações de hoje serão metodicamente sentidas e analisadas pelas gerações futuras. Certamente, "A Farewell To Kings" cede uma das mais belas letras já escritas por Neil Peart.

O título da canção e também do disco foram indiscutivelmente inspirados na obra A Farewell to Arms (Um Adeus às Armas), do escritor norte-americano Ernest Hemingway (1899-1961). Este livro, publicado em 1929, traz em tom autobiográfico alguns momentos marcantes da vida do autor que, ainda muito jovem, decidiu ir à Europa pela primeira vez, no período em que a Primeira Grande Guerra (1914-1918) assombrava o mundo. Recebendo a recusa de alistamento devido a um problema na visão, Hemingway, ainda decidido em ir à guerra, conseguiu posteriormente uma vaga de motorista de ambulância na Cruz Vermelha. Na Itália, acabou se apaixonando pela enfermeira Agnes Von Kurowsky, sua inspiração para a criação da heroína inglesa Catherine Barkley. De forma similar ao apelo da canção, A Farewell To Arms traz um belo romance em meio à guerra, esta que perde importância no cenário dando lugar a uma lição de amor, heroísmo e desprendimento.

Diferente da maioria das canções do Rush, "A Farewell To Kings" também contou com a participação de Peart na composição instrumental, ao lado de Geddy Lee e Alex Lifeson. Ampliando ainda mais suas marcantes explorações musicais, a canção mostra de imediato a intensa dedicação da banda pela busca de profundidade, figuras e simbolismo de suas composições, com notáveis sensações já sendo deflagradas na utilização do tocante violão clássico de abertura. A peça traz ponderações que questionam o que nós, como sociedade atual, deixaremos de herança para as gerações futuras, tendo em vista que ainda nos encontramos mergulhados em um mundo impregnado de hipocrisia, ódio, medo, idiotização, mentiras e passividade. O interessante é que o baterista constrói o tema utilizando imagens características de tempos passados, como castelos, sábios, reis e salões sagrados, que denotam que muitos dos grandes desafios da história permanecem até hoje, porém com outras roupagens.

Os primeiros momentos de "A Farewell To Kings" sugerem um apelo à meditação através da pequena introdução medieval em violão clássico oferecida por Lifeson. O álbum foi gravado no Rockfield Studio, localizado na zona rural do País de Gales, e cantos de pássaros podem ser ouvidos ao fundo, enquanto Neil se une à bela cena com seus sinos, triângulos e percussão. Nesse momento, a canção já se afirma como um forte marco na carreira do trio, apresentando um novo elemento que se tornaria, a partir dali, parte importantíssima de sua sonoridade: a experimentação de Geddy na construção de padrões no clássico Minimoog. Após uma ligeira pausa, os músicos explodem com seu poder tradicional e energia básica ainda intactos, onde o vocalista indaga de forma contundente a nossa própria posição na história. "A Farewell To Kings" traz, portanto, músicos ainda mais avassaladores e exímios em suas atribuições, arquitetando linhas de baixo e bateria simplesmente estonteantes e viagens guitarrísticas de humores variados absolutamente magistrais.

"A parte acústica foi gravada ao ar livre, com todos os sons de blocos sonoros e percussão", lembra Geddy. "Você pode ouvi-los ecoando juntamente com os pássaros cantando".

"Não consigo colocar as ideias em palavras quando quero dizer algo, não tenho dom para isso. Dessa forma, a guitarra é uma das minhas maneiras de dizer as coisas que desejo"
, afirma Lifeson. "Não havia estacionado no instrumento nos primeiros anos com a banda, era mais como se fosse alguém com o qual tivesse vivido há muito tempo e que já dava a relação como certa. Mas, esse ano, descobri uma nova e forte apreciação - o que a guitarra poderia fazer por mim e o que eu poderia fazer por ela. Comigo funciona assim. Nesse disco, sinto como se estivesse falando. Existem coisas que ouço como guitarrista que me deixam orgulhoso. Quando escuto minhas performances, sei exatamente o que sentia ali e o que queria dizer. Na verdade, isso é algo que sempre senti, mas que está bem mais forte agora. Iniciei aqui um retorno aos aspectos mais técnicos da guitarra e ao violão clássico".

A banda, definitivamente, se mostra bastante concisa nesse momento da carreira, com ideias bem claras de onde pretendiam chegar. O desenvolvimento da canção ainda reserva a experiência de uma pausa instrumental envolta por toda força característica do Rush: o rock pesado dos álbuns anteriores permanece, mas os arranjos e a sonoridade estão incrivelmente refinados.

Após composições líricas como "Beneath, Between and Behind" de Fly By Night (1975), que discutia as motivações dos primeiros cidadãos e empreendedores nos Estados Unidos e a gradativa perda dos princípios de liberdade e humanidade empunhados em seu começo, e "Bastille Day", de Caress of Steel (também de 1975), onde temos a preocupação com a repetição de erros históricos tomando como exemplo o cenário de terror do evento central da Revolução Francesa, em "A Farewell To Kings" há o estabelecimento de um plano temporal duo, que convida o ouvinte a "virar as páginas da história" não para vislumbrar um passado mítico de reis heroicos, mas para refletir sobre a observação das futuras gerações em torno dos papéis que nós mesmos desempenhamos na atualidade. O apelo da canção evoca o anseio pela redescoberta definitiva da capacidade de distinção, a partir de um verdadeiro encontro e materialização plena das ideias que nos fizeram fortes algum dia.

Muito além do que um simples tributo a cenários pretéritos e às conquistas das sociedades ao longo da história, "A Farewell To Kings" incita pensamentos mais abrangentes, propondo o exercício de relembrar e contextualizar posicionamentos de grandes pensadores, principalmente daqueles que incitaram os ideais iluministas no século XVIII. Há um confronto com os desdobramentos que desembocam nos líderes e sistemas controversos das sociedades atuais, além do questionamento da postura geralmente passiva dos homens, que cada vez mais são consumidos pelo cinismo e pela auto absorção, além de se revelarem terrivelmente insensíveis em uma realidade tão ilógica. De quem mais seriam os corações secos, senão os nossos? Como em "2112", os sábios novamente lamentam os "Salões Sagrados da Verdade" que representam, indubitavelmente, os gabinetes, as igrejas, os tribunais e as escolas, tomados agora por um grande número de políticos, magistrados, educadores e clérigos contaminados de hipocrisia, que se afirmam em condutas que apenas favorecem a afirmação e manutenção de tal conjuntura.

"A Farewell To Kings" evoca equivalências que perduram através dos tempos nas sociedades, estas que, mesmo com suas transformações estruturais históricas, ainda mantém os mesmos atores, principalmente no que diz respeito aos poderosos subjugando e manipulando facilmente as massas. A utopia aqui é pensar em um definitivo adeus aos privilégios da realeza clássica que, mesmo com todas as modificações políticas vividas, jamais deixaram de existir. Temos aqui, portanto, uma forte crítica ao egoísmo e as mentiras das lideranças e das elites contemporâneas, que continuam criando mecanismos para a manutenção de seus interesses, além da reflexão sobre as multidões completamente dominadas e tragadas pela animosidade. O recado de Peart recai sobre a estranheza da esmagadora maioria que permite que tais líderes ajam da forma que desejam em detrimento de outros inúmeros interesses e anseios básicos, conseguindo com seus mecanismos tornar as pessoas abatidas, desacreditadas e sempre optando pelas vias de menor resistência. Essas seguem na compra de promessas vazias de representantes que trabalham contra muitos, e que utilizam eles mesmos para obter cada vez mais poder. Em ultima análise, o tema de "A Farewell To Kings" afirma que os homens, mesmo tão desacreditados, ainda trazem consigo o poder para moldar a realidade, através de propósitos que definitivamente nos direcionem para mais perto do coração.

A capa do álbum exibe um boneco marionete abandonado vestido como um rei, com um deserto urbano desolado ao fundo. O modelo na fotografia é o guitarrista Josh Anderson, amigo do artista gráfico Hugh Syme. Eles tocaram juntos na canadense The Ian Thomas Band. O manto sobre o trono e a coroa no chão mostram que o rei perdeu sua soberania, mas as cordas de controle revelam que essa jamais deixou de existir, sendo ainda perpetuada nas mãos de outros líderes e manipulada através de estruturas de poder travestidas de novidade, mas que continuam conservadoras. No encarte interno, os três integrantes são fotografados em uma casa de ares antigos e majestosos, onde o peso dos móveis contrasta com a luz brilhante que flui através de uma grande porta francesa semiaberta. As tensões imbuídas na letra são sutilmente introduzidas através da parca iluminação, onde a escuridão e a luz se encontram fortemente, representando os conflitos que jamais foram extinguidos.

"Josh era um homem muito, muito magro e era perfeito para aquele papel", lembra Syme. "Ele tinha uma testa lindamente recuada e tudo o que eu tinha que fazer era retocar sua boca, ombro e joelhos, para que parecesse um boneco. O céu e o primeiro plano na imagem não são no mesmo lugar. Os prédios e o céu são de Toronto, e o primeiro plano era um armazém demolido em Buffalo. Adoraria que fosse uma catedral naquela mesma condição, ou algo mais notório pelo que pretendíamos sentir olhando para uma construção antiga naquele estado. Iniciamos alguns trocadilhos naquele álbum, principalmente com o rei na condição de marionete. Houve uma série de críticas ao Trono nas duas últimas décadas, como sendo uma herança que não desconsideramos, mas que certamente não são mais levadas tão à sério".

© 2014 Rush Fã-Clube Brasil

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