XANADU



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XANADU

"To seek the sacred river Alph
To walk the caves of ice
To break my fast on honey dew
And drink the milk of Paradise..."


I had heard the whispered tales
Of immortality
The deepest mystery
From an ancient book. I took a clue
I scaled the frozen mountain tops
Of eastern lands unknown
Time and Man alone
Searching for the lost - Xanadu
Xanadu - To stand within The Pleasure Dome

Decreed by Kubla Khan
To taste anew the fruits of life
The last immortal man
To find the sacred river Alph
To walk the caves of ice
Oh, I will dine on honey dew
And drink the milk of Paradise


A thousand years have come and gone
But time has passed me by
Stars stopped in the sky
Frozen in an everlasting view
Waiting for the world to end
Weary of the night
Praying for the light
Prison of the lost - Xanadu

Xanadu - Held within The Pleasure Dome

Decreed by Kubla Khan
To taste my bitter triumph
As a mad immortal man
Nevermore shall I return
Escape these caves of ice
For I have dined on honey dew
And drunk the milk of Paradise
XANADU

"Buscar o sagrado rio Alph
Caminhar pelas cavernas de gelo
Quebrar meu jejum no mel
E beber o leite do paraíso..."


Ouvi falar de contos sussurrados
Sobre imortalidade
O mais profundo mistério
De um livro antigo. Obtive uma pista
Escalei topos de montanhas geladas
De terras orientais desconhecidas
Tempo e Homem sozinhos
À procura do perdido - Xanadu
Xanadu - Permanecer no Domo do Prazer

Construído por Kubla Khan
Saborear novamente os frutos da vida
O último homem imortal
Encontrar o sagrado rio Alph
Andar pelas cavernas de gelo
Oh, cearei o mel
E beberei o leite do paraíso


Mil anos vieram e se foram
Mas o tempo me ignorou
Estrelas paradas no céu
Congeladas em uma visão perpétua
Esperando que o mundo acabe
Cansado da noite
Rezando pela luz
Prisão dos perdidos - Xanadu

Xanadu - Preso no Domo do Prazer

Construído por Kubla Khan
Para saborear meu triunfo amargo
Como um louco homem imortal
Nunca mais voltarei
Escaparei dessas cavernas de gelo
Pois ceei o mel
E bebi o leite do paraíso


Música por Geddy Lee e Alex Lifeson / Letra por Neil Peart


Maravilha musical que visita Samuel Taylor Coleridge

A segunda canção de A Farewell To Kings é a clássica "Xanadu". Com aproximadamente onze minutos de duração, a construção oferece uma longa e marcante introdução até a narrativa escrita por Neil Peart diretamente inspirada pelo poema Kubla Khan, do poeta, crítico e ensaísta inglês Samuel Taylor Coleridge (1772-1834). Trata-se de uma obra monumental, carregada de destaques tão notáveis e inovadores que fixam um novo Rush, agora marcante pela exploração de sintetizadores oscilantes, elementos orquestrais e poesia fortemente épica, além das atuações nos instrumentos originais ainda mais incríveis e dinâmicas.

Isolados no interior do País de Gales, mais precisamente no Rockfield Studios, localizado no condado de Monmouthshire, o trio prossegue com o clima de dias passados em seu disco, concebendo uma grande odisseia que captura o canto de pássaros num amanhecer permeado pelo álcool e pelo aroma canábico. "Fumávamos e bebíamos muito naquela época", lembra Geddy Lee. A grande dedicação e superação de limites definem "Xanadu" como uma das mais completas e admiradas obras produzidas pelos músicos em toda carreira, uma fabulosa elaboração que desenha o vívido explorar de um grande império mítico. Com ligeiras lembranças das abordagens temáticas experimentadas em Caress of Steel, de 1975, "Xanadu" exprime um amálgama musical triunfante e mágico, um verdadeiro espetáculo dramático.

Nesse momento, a banda abraça todas as substâncias inerentes ao rock progressivo que perseguia desde seus discos predecessores, afirmando, concomitantemente, seu próprio som e identidade. Agora, as construções são ainda mais apaixonadas e engenhosas, e as palavras não somente projetam os assuntos, mas celebram as músicas de maneira mágica. As passagens mais altas e agressivas não surgem apenas para que o grupo possa demonstrar seu poderio, mas sim para servir à própria história.

Os músicos primam por pontuações certeiras de sintetizadores, expressivas guitarras double neck e harmonias estonteantes, concluindo a saga em um estrondo seguido por diminuta percussão militar. "Xanadu" pode ser considerada a primeira canção do Rush a utilizar, de fato, sons eletrônicos como parte integral. Altamente pictórica, a obra representa um dos maiores exemplos das suas novas direções, recursos e tendências. Diferentemente de peças anteriores estruturalmente similares, como "2112" e os épicos de Caress of Steel, são utilizados aqui novos efeitos sonoros que se definem como verdadeiros marcos no desenvolvimento musical do conjunto. Há agora a exigência de que cada integrante trabalhe de modo árduo em uma grande série de instrumentos, o que se tornaria uma atração à parte da máquina Rush. O heroico Alex Lifeson utiliza a imponente Gibson EDS-1275, guitarra imortalizada por Jimmy Page que traz dois braços - seis e doze cordas - em um único corpo, além de dispositivos como o Roland Space Echo e pedais Chorus. Geddy, por sua vez, faz uso de um Rickenbacker 4080/12, modelo com baixo e guitarra combinados, passando também a acionar com os pés os pedais Moog Taurus, ao mesmo tempo em que canta com sua interpretação inconfundível. De forma periódica, ele se dedicaria ainda ao sintetizador Mini Moog, criando novas e exuberantes nuances, e aos teclados Polyphonic Chorale, fechando a gama espantosa de atividades que o consagrariam como um dos artistas mais habilidosos e proficientes da história do rock. Já o talento Peart comandaria um impressionante e colossal conjunto de percussão adaptado ao seu kit Slingerland de bumbo duplo. Ao dominar essa considerável variedade de ferramentas e dispositivos, o Rush transcenderia a linguagem do rock, alcançando a materialização de ideias riquíssimas de orquestração e sonoridade, e tal espírito de experimentação e ambição levaria a banda, que em seus primórdios visitava a hibridez do blues-rock, para a tradição complexa e exuberante do art rock. "Xanadu" exemplifica, portanto, a capacidade trina incomum de Geddy, Alex e Neil em se multiplicarem na concepção e execução de composições cheias que soam como um grande concerto, munidas de impactantes mudanças de ritmo, climas, sensações e desenhos que constroem mundos. Decerto, a canção consolida os músicos como soberanos na arte da música matemática e cuidadosamente coordenada.

"Utilizamos bastante as double-necks em 'Xanadu'", lembra Geddy. "Usei a minha apenas para reforçar alguns trechos finais na guitarra".

"Temos o Moog Taurus bass pedal, que traz o alcance efetivo de duas oitavas"
, explica Alex. "Usei bastante em 'Xanadu', onde faço os harmônicos para a linha feita por Geddy em seu pedal".

"Nosso método de gravação naquela época era o de tentar capturar as músicas de uma só vez, seguindo até o fim"
, recorda Alex. "'Xanadu' foi, na verdade, um segundo take para a faixa básica. Nosso engenheiro, Pat Moran, não acreditava que pudéssemos fazer uma canção de onze minutos em apenas dois takes. Quando fizemos, ele ficou pasmo. 'Como esses caras podem destilar uma canção de onze minutos em apenas duas tomadas?' Esse tipo de preparação era importante para nós".

Liricamente, "Xanadu" conta a história da decisão de um homem em perseguir uma antiga lenda que afirma ser possível o alcance da imortalidade, expondo as terríveis consequências que lhe recaem quando consegue atingir seu objetivo. Embora não seja esclarecido na canção, o termo Xanadu, com referências ao poema de Coleridge, indica a lendária capital de verão de um período do império mongol, emprestando aqui o cenário oriental longínquo e extraordinário que guarda esse valioso poder. Seguindo em uma árdua e longa expedição, o protagonista vitorioso encontra e saboreia sua prodigiosa benesse, porém, logo passamos a experimentar com ele o desalento angustiante e enlouquecedor de sua prisão na representação de cavernas geladas. Mil anos se passam, e o corpo eterno ainda aguarda o fim do mundo, para tentar assim encerrar a tortura perpétua de sua bem sucedida missão.

Da mesma forma que o título, o início da letra é diretamente inspirado em Kubla Khan, porém, segundo Peart, seu plano original era compor uma canção baseada no filme Cidadão Kane (1941), do cineasta norte-americano Orson Welles (1915 - 1985), este que também utiliza frases de Coleridge como abertura de suas primeiras cenas. Xanadu dava nome à propriedade suntuosa do magnata Charles Foster Kane, abandonado pelos pais quando criança, mas que constrói um verdadeiro império jornalístico no decorrer da vida. O filme abre com a morte do protagonista, pronunciando em seu último suspiro a palavra "Rosebud". Após dias de sensacionalismo com a notícia de seu falecimento, o repórter Jerry Thompson é enviado por seu chefe para investigar sua vida, a fim de descobrir o significado da sua última fala. Entrevistando pessoas do passado de Kane, Thompson mergulha na vida de um homem solitário que, desde a infância, é obrigado a seguir a vontade alheia. Ninguém ao seu redor importava-se verdadeiramente com ele, buscando, por meio da aquisição de bens, a adoração e aproximação das pessoas. Por fim Thompson, após exaustiva investigação, se vê incapaz de descobrir o real significado da palavra, concluindo que Kane foi um alguém que possuiu tudo o que quis, e que "Rosebud" talvez representasse algo que ele nunca tenha conseguido, ou que até tenha perdido. No entanto, "Rosebud" era o nome do trenó com o qual Kane brincava na infância - uma alusão aos únicos momentos de sua vida em que esteve realmente feliz.

Durante sua pesquisa, no momento em que buscava informações básicas sobre a abertura com Kubla Khan, Peart acabou se tornando surpreendentemente mais interessado por essa obra, reorientando totalmente sua composição nessa direção.

"No verão de 1976, em uma cabana localizada no Sul de Ontário, trabalhava nas letras para uma canção chamada 'Xanadu' (não havia consumido ópio, mas devia ter fumado cigarros demais)", lembra o baterista. "A ideia inicial foi inspirada no filme Cidadão Kane e em seu protagonista, Charles Foster Kane. Havia planejado construir algo sobre esse tema. No começo do filme, as primeiras linhas de Kubla Khan são citadas: 'In Xanadu did Kubla Khan, a stately pleasure-dome decree'. Como pesquisa, dei uma olhada no poema, e acabei tão impressionado que o mesmo tomou conta da canção. Por fim, havia muito 'mel' em toda ela - muito de Coleridge, devo dizer - e logo foi musicalmente um de nossos primeiros grandes 'épicos'".

"Meu pensamento original era Cidadão Kane"
, continua Peart. "Desejava fazer algo alinhado com esse filme, e assim decidi escrever a canção por esse ângulo. Acabei me deparando com o poema, e essas quatro linhas ficaram gravadas numa imagem que queimava na minha cabeça. Ele me bateu com tanta força que, de forma repentina, todo o escopo da temática havia mudado. O texto me fez congelar profundamente. Foi tão assustador... Nunca pensei que estaria em Kubla Khan mas, quando me deparei com ele, quis lê-lo por completo devido sua ligação com Cidadão Kane. Ele me pegou. Foi muito poderoso".

"Mais ou menos contra minha vontade, a canção acabou sendo tomada pelo poema de uma forma que nunca aconteceu em toda minha carreira. Por essa razão, a letra final nunca foi minha parte favorita do trabalho por ser muito derivativa, mas que acabou funcionando como um bom veículo musical para um dos nossos primeiros 'trabalhos estendidos'. Além disso, foi prodigiosa por eu ter adicionado o aspecto de 'jornada de aventura' na história, uma vez que os locais mais distantes para os quais havia viajado eram as arenas e clubes de rock da América do Norte. Também é importante ressaltar que retratei a ideia da imortalidade como uma espécie de destino sombrio, uma maldição. A primeira letra que escrevi na vida, 'Retribution', com cerca de dezessete anos, era para uma canção da banda na qual tocava, JR Flood. Quando falei com minha mãe sobre a mesma e o título, ela gritou: 'Você escreve para quem, para seus professores da faculdade?' Isso foi rico, uma declaração para um aspirante a baterista de alta evasão escolar. Nos últimos anos, tendo alcançado o sucesso com o Rush, ouvi um comentário depreciativo: 'O Rush é o que acontece quando você deixa o baterista escrever as músicas'. Muito engraçado, embora é claro que eu não seja o único culpado: só escrevo as letras. 'Retribution' era uma história em primeira pessoa sobre uma alma presa na imortalidade como um castigo, prenunciando o personagem que criei para 'Xanadu'. Além disso, é irônico que o tema dominante em Cidadão Kane seja o oposto: a mortalidade como um castigo - simbolizada pela palavra de Kane quando ele está morrendo: 'Rosebud'".


Assim como o longo The Rime of the Ancient Mariner (em português A Balada do Velho Marinheiro), de 1798, Kubla Khan é outra obra de Coleridge de inegável destaque. Concluído em 1797 e publicado somente em 1816, o poema, como muitas criações atemporais do rock e de acordo com o próprio autor, foi a consequência de um sonho influenciado pelo uso do ópio, numa noite em que lia numa coletânea o relato da viagem que muitos acreditam que o explorador veneziano Marco Polo (1254 - 1324) tenha de fato feito à China em 1275. Xanadu (também conhecida como Shangdu) era a capital de verão do império de Kublai Khan, neto de Genghis Khan, conquistador mongol cujos domínios abrangeram boa parte da Ásia entre os anos de 1215 e 1294. Belíssima, localizava-se em terras chinesas, sendo dividida em cidade exterior, cidade interior e no magnífico palácio de mesmo nome, onde o governante permanecia nas épocas mais quentes. Muitos viajantes europeus relataram seu esplendor, porém Marco Polo foi o primeiro a descrever a capital no ocidente, imagem tomada posteriormente por Coleridge na representação de uma perfeita terra idílica, espalhando-se na cultura popular ocidental como uma metáfora para abundância e opulência, lembrada atualmente, em grande parte, devido sua poesia.

Em setembro de 1797, Coleridge começou a viver em Nether Stowey, sudoeste da Inglaterra, caminhando bastante pelas proximidades das montanhas de Quantock Hills, com seu colega poeta William Wordsworth e sua irmã Dorothy Wordsworth (atualmente, essa mesma rota é chamada Coleridge Way). Durante todo o outono, ele trabalhou em muitos poemas, incluindo The Brook e a tragédia Osorio. Em algum momento entre 09 e 14 de outubro de 1797, ao completar a tragédia, acabou saindo de Stowey seguindo para outro vilarejo, Lynton. Ao retornar, ficou doente e decidiu descansar na Ash Farm, uma fazenda próxima à pequena Igreja St. Beuno em Culbone, um dos poucos lugares no qual se abrigou em sua rota. Em consequência de sua ligeira indisposição, um anódino lhe fora recomendado, e seus efeitos o fizeram adormecer em sua cadeira no momento em que estava lendo um trecho da coletânea de viagens inglesa Purchas, his Pilgrimes, or Relations of the World and Religions Observed in All Ages and Places Discovered (1625), do religioso, historiador e escritor inglês Samuel Purchas (1575 - 1626), que continha uma breve descrição da cidade de Xanadu: "Here the Khan Kubla commanded a palace to be built, and a stately garden thereunto: and thus ten miles of fertile ground were inclosed with a wall" ("Aqui, Kubla Khan ordenou a construção de um palácio, e um jardim imponente para ele: e, assim, dez quilômetros de solo fértil foram encerrados com um muro"). Autor de uma vasta coleção de histórias de viagens, Purchas era um dos representantes dos países que tentavam romper o monopólio ultramarino português e espanhol adotando políticas propagandísticas, tendo seu livro impresso no meio privilegiado da mais ampla divulgação possível sobre as viagens do além-mar. O uso da imprensa para desafiar a soberania ibérica e promover os avanços dos concorrentes transformaria esses materiais em palco de disputa entre atores europeus pela posse do Novo Mundo.

Purchas, por sua vez, buscou embasamento nos relatos de Marco Polo, que descreveu Xanadu em torno de 1298 ou 1299: "Depois de três dias cavalgando ao sair da última cidade mencionada, Khanbaliq (agora Pequim), entre o nordeste e o norte, você chega à chamada Xanadu, construída pelo Khan agora reinante. Neste lugar há um lindo palácio de mármore, com quartos dourados pintados com figuras de homens, feras e de pássaros, além de uma variedade de árvores e flores, todos feitos em uma arte tão requintada que faz você considerá-los com prazer e espanto. Ao redor do palácio, foi construído um muro de vinte e cinco quilômetros que o rodeia, e no interior do parque existem fontes, riachos e belas planícies, com vários tipos de animais selvagens (exceto aqueles de natureza feroz), adquiridos pelo imperador e colocados ali para fornecer alimentos para seus falcões mantidos por ele no local".

Marco Polo também mencionou um grande palácio móvel feito de bastões ou bambu trançado, que poderia ser desmontado rapidamente e mudado de local. "Além disso, em outro ponto do parque, onde há um bosque encantador, eles têm outro palácio construído em bastões que devo descrever. Ele é todo dourado, e com acabamentos ainda mais elaborados internamente. É firme em colunas douradas amarradas, e em cada uma delas há um dragão todo dourado, com suas caudas ligadas ao topo da coluna, enquanto as cabeças suportam a arquitrave. As garras da direita e da esquerda são alongadas da mesma forma para apoiar a estrutura. O telhado, como o resto, é formado por bastões, coberto com um verniz tão forte e excelente que nenhuma chuva poderia apodrecê-los. Esses bastões têm uma circunferência de três palmos, com dez ou quinze passos de comprimento. Eles são cortados transversalmente em cada nó, e em seguida são divididos para formarem duas peças ocas que irão cobrir a casa. Apenas os bastões que formam o telhado são pregados por baixo para evitar que o vento os levante. Em suma, todo o palácio foi construído com esses bastões, que também servem para uma grande variedade de fins úteis. A construção é concebida de tal forma que ele pode ser retirado e colocado novamente com grande rapidez, podendo ser levado em pedaços e removido para o local que o Imperador desejar. Quando erguido, é apoiado para lutar contra o vento por mais de duzentas cordas de seda".

Kubla Khan apresenta apenas cinquenta e cinco linhas. Mergulhado em aproximadamente três horas de sono alucinógeno profundo, pelo menos para os sentidos externos, Coleridge trazia a mais vívida convicção de que não teria engendrado menos de duas ou três centenas de linhas em sua obra. Todas as imagens levantavam-se perante ele sem qualquer sensação ou consciência de esforço e, ao despertar, sua mente reteve uma recordação distinta do todo. Tomando sua pena, tinta e papel de imediato, ansiosamente começou a escrever as linhas preservadas como um poema, até ser interrompido por um negociante vindo de Porlock, um vilarejo costeiro localizado no condado de Somerset, no sudoeste da Inglaterra. Após ser detido por cerca de uma hora, retornou para seu quarto e descobriu que, para sua grande surpresa e mortificação, embora ainda mantivesse algumas vagas lembranças do conteúdo geral (com exceção de oito ou dez linhas de imagens espalhadas), todo o restante das cenas havia morrido como pedras lançadas na superfície de um córrego. Dessa forma, o poema não foi finalizado conforme seu plano original, pois a distração fez com que esquecesse os desdobramentos. Ao contrário do que fazia normalmente, Coleridge manteve Kubla Khan não publicado até 1816, quando o mesmo foi levado por outro destacado poeta britânico, Lord Byron (1788 - 1824). O primeiro registro sobre a obra surgiu em outubro de 1798 no Dorothy Wordsworth's Journal, dos seus amigos William e Dorothy. Alguns relatos dão conta da possibilidade do poema ter sido recitado para pessoas íntimas nesse período, apenas na forma de utilização privada. Assim, a data exata de Kubla Khan é incerta, pois Coleridge, que normalmente datava seus poemas, não o fez nesse. Em 1797, ele escreveu para o orador inglês John Thelwall (1764 - 1834), expondo os sentimentos relacionados ao seu trabalho:

"Eu desejava muito, como o Vishna indiano, flutuar sobre um oceano infinito embalado pela flor de lótus, e acordar uma vez em um milhão de anos por alguns minutos - apenas sabendo que iria dormir por mais um milhão... Posso às vezes sentir fortemente as belezas, você descreve em si mesmas e para si mesmas - porém frequentemente todas as coisas aparecem pequenas - todo o conhecimento, que pode ser adquirido, uma brincadeira de criança - o próprio universo - o que mais um amontoado de pequenas coisas? ... Minha mente se sente como se doesse de contemplar e conhecer alguma coisa grande - algo uno e indivisível - e só a fé nessas rochas e cachoeiras, montanhas ou cavernas me dão o sentido de sublimidade ou majestade".

Muitos contemporâneos de Coleridge atacaram seu trabalho, além de questionarem a história de sua origem. Somente anos mais tarde os críticos passaram a admirar abertamente a obra. A maioria da crítica moderna considera Kubla Khan como um dos seus mais importantes poemas, além de defini-lo como um dos mais famosos exemplos do romantismo inglês. Uma coleção de seus escritos foi publicada em 25 de maio de 1816, e Coleridge incluiu como subtitulo de Kubla Khan "A Fragment" ("Um Fragmento"), para se defender dos comentários em torno de sua natureza incompleta. A versão original foi dividia em duas estrofes, com a primeira finalizando na linha 30. Foi impresso com um prefácio que alegava o sonho induzido pelo ópio, totalizando mais três outras tiragens durante a vida do poeta, com a última constando em seu Poetical Works, de 1834, que receberia ainda o subtitulo expandido "Or, A Vision in a Dream. A Fragment". ("Ou, Uma Visão em um Sonho. Um Fragmento").

Com Coleridge, temos a representação de Xanadu inspirada nos relatos e percepções de Marco Polo, mas com a soma de vários outros elementos imaginativos. O poema se inicia com uma descrição apaixonada da cidade cortada ao rio Alph, este que atravessa cavernas de gelo antes de alcançar um mar desconhecido. Construída em um jardim paradisíaco como o Éden após a queda do homem, é totalmente isolada por muros, e suas propriedades finitas e prazeres feitos por mãos humanas são contrastados com as sensações de infinitude das cavernas naturais pelas quais o rio Alph corre. O poema expande a exploração do narrador em torno de um abismo escuro entre os jardins, descrevendo a área circundante como selvagem e santa, elementos que podem representar o lado escuro da alma, ao refletir o efeito desumanizador do poder e domínio. Uma fonte surge e explode violentamente a partir do abismo, dando existência e movimento ao sinuoso rio. As fontes costumam simbolizar o início da vida, como em "The Fountain of Lamneth", canção de Caress of Steel, de 1975, ou uma forte e notável criatividade.

A não existência de um rio chamado Alph na China, por exemplo, pode representar, segundo alguns estudiosos, uma espécie de transposição do rio grego Alfeu. Já na segunda parte, temos a tentativa de rememoração de uma canção ouvida no sonho, na voz de uma "donzela abissínia" que direciona o leitor a um encerramento metapoético, uma vez que, segundo o eu-lírico, tais notas seriam capazes de reconstruir no ar o milagre do "domo ao sol nas cavernas de gelo" - a união da cúpula construída pelo imperador, artificial e civilizada, com o mundo natural das grutas subterrâneas permeadas pelo curso de água sagrado. Por fim, os últimos versos descrevem as reações maravilhadas daqueles que recebem o privilégio de visitar Xanadu.

Kubla Khan ouve as vozes dos mortos, referindo-se a uma guerra vaga que não é referenciada em nenhuma outra parte do poema. Esse conflito pode significar uma pena a ser paga pela busca incessante do prazer, ou simplesmente o confronto do presente com o passado. As visões dos locais que incluem a cúpula, as cavernas e a fonte se mostram sempre enigmáticas, e juntas, as estruturas naturais e aquelas feitas pelos homens formam um cenário milagroso, representando uma mistura de opostos - o que configura a própria essência da criatividade.

Nessa incrível canção do Rush, Peart parafraseia o texto de Coleridge, que desenha elementos como o leite e o mel a simbolizar renascimento, e cavernas gélidas que provocam sensações de uma mente aflita e desolada. A imortalidade ambicionada e conquistada torna a existência congelada e estagnada, uma espécie de prisão entre a vida e a morte. "Xanadu" aprecia o esplendor do palácio e dos domínios de Kubla Khan, mas enfatiza as insuportáveis consequências de uma busca solitária e obcecada. Uma estrutura épica que visita referências de uma dinastia mongol específica, mas que traz como o mais importante uma longa e impressionante construção de grande virtuosismo e poderio musical.

© 2014 Rush Fã-Clube Brasil

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