"MILAGRE NO COLORADO", NOVO TEXTO DE NEIL PEART



28 DE MARÇO DE 2015 | POR VAGNER CRUZ

Neil Peart publicou hoje em seu site oficial um novo e belo texto para seu News, Weather & Sports: "Miracle in Colorado" ("Milagre no Colorado"), no qual remonta o desdobramento fascinante de um curioso acontecimento retratado em seu livro Roadshow: Landscape With Drums: A Concert Tour by Motorcycle, de 2006.

Peart na vila Monument, Colorado, em 29/06/2004 | Foto por Kevin J. Anderson

Em 2004, Peart viajava pela região oeste do Colorado, nos Estados Unidos, com seu constante companheiro de estrada Michael e o convidado Brian Catterson, enfrentando condições de tempo muito adversas, como chuvas, neve, ventos e névoa. Ele seguia para visitar o escritor e amigo Kevin J. Anderson (com o qual trabalhou recentemente no livro Clockwork Angels, lançado no Brasil no fim do ano passado) e sua esposa Rebecca, enquanto Michael acompanharia Brian em uma visita a seu irmão.

Seguindo seu percurso, ao encontrar um tráfego um pouco mais intenso, uma pequena picape de patrulha parou ao lado do baterista. O guarda informou que uma das suas bagagens havia caído na estrada - mais precisamente a que estava presa no lado direito da moto - a aproximadamente um quilômetro. Peart até tentou encontrar seu material, retornando e rodando pelos locais que passou, mas sem sucesso.

Monarch Pass, Colorado - Junho de 2008

Chateado, ele se lembrou das coisas que carregava, pensando primeiro nas substituíveis: roupas, um livro com o itinerário, uma viseira de capacete sobressalente, um kit de reparação de pneus, mapas, um despertador do exército suíço, um boné e um frasco com seu whisky favorito, Macallan. Logo após, recordou aquilo que considerava insubstituível: um kit de barbear e medicamentos, uma agenda com telefones e endereços, uma cópia do seu livro Traveling Music com todas as suas notas de revisão, um binóculo Carl Zeiss para observar pássaros que havia comprado com sua primeira esposa, Jackie, no safári que fizeram no Leste Africano em 1987 e o mais importante para ele: o relógio Patek Philippe, com o qual sua atual esposa Carrie havia lhe presenteado no aniversário de 50 anos e o anel de noivado Cartier, que ela tinha lhe dado em 2000 (ele não costuma utilizar esses itens enquanto pilota sua moto ou toca bateria, mas sempre gostou de tê-los por perto).

"Uma parte da minha mente sabia que isso não era a pior coisa que poderia acontecer - minha imaginação sempre permitiu a possibilidade de extremos, de desastres fatais. Mas, ao mesmo tempo, ter sobrevivido a algumas tragédias inimagináveis me deixou permanentemente frágil. Eu vivia e funcionava por dentro em uma armadura fina de "adaptação", que era facilmente perfurável. Me senti mal sobre essa bolsa perdida, à beira das lágrimas. Parei na estrada, acendi um cigarro com as mãos trêmulas e tentei pensar no que fazer".

Peart sabia da impossibilidade de conseguir seus pertences de volta, restando-lhe apenas a esperança de que alguém de bom coração encontrasse os mesmos, ou até mesmo um policial, que retiraria a bolsa da estrada a fim de que não prejudicasse o fluir trânsito. Mais tarde, o músico descobriu que outros usuários da moto BMW enfrentaram o mesmo problema, o que denotava um defeito de fabricação. Por sorte, o músico ainda estava com um mapa na mochila magnética que ficava presa no tanque da moto, com indicações que levariam à casa de Kevin. Após alguns contratempos para encontrar o local (ele estava cansado e com frio), Peart conseguiu chegar na residência do amigo, logo explicando o ocorrido após uma bela dose de whisky.

Kevin J. Anderson e Neil Peart - 29/06/2004 | Foto por Rebecca Moesta

Após quatro ou cinco dias, Neil e Michael estavam de volta à estrada, e pararam para descansar em um hotel. À noite, em seu quarto, o baterista pegou seu celular para verificar as mensagens que recebera durante o dia. Inicialmente, ouviu uma do seu irmão Danny (eles se encontrariam no dia seguinte), logo apagando a mesma e passando para próxima. A segunda mensagem trazia a voz de um homem desconhecido, que se apresentou e surpreendentemente informou que havia encontrado a bolsa perdida, explicando que o material estava intacto e que só a havia aberto para buscar algum telefone de contato. Neil, de imediato, ficou eufórico com a notícia, mas essa a alegria repentina, aliada ao cansaço o fez deletar a mensagem quase que involuntariamente, por força do hábito.

"Eu estava cético quanto ao meu otimismo do passado e, na verdade, nesse ponto havia me resignado com a perda. Naquele momento eu não poderia esperar para contar ao Michael que ainda havia pessoas boas no mundo. Meu dedo desceu para salvar a preciosa mensagem mas, por força do hábito, choque e fadiga ("Fadiga te faz estúpido") percebi que, mesmo com minha mente gritando "Não!", pressionei o botão "Excluir"".

A esperança agora era que o bom samaritano ligasse novamente, o que não aconteceu. Michael e Neil tentaram reaver o número com a empresa de telefonia, colocando também um anúncio em um jornal de Colorado Springs com o número 0800 de Michael (inclusive oferecendo uma boa recompensa), mas não obtiveram sucesso. Eles chegaram a pensar que a pessoa havia desistido de devolver o material ao se deparar com o relógio valioso.

O anúncio em um jornal de Colorado Springs

Os anos passaram e o caso se perdeu na memória do músico. Porém, de forma simplesmente mágica, Peart recebeu um telefonema no dia 4 de fevereiro de 2015 do seu antigo amigo Rob Wallis, que trabalhou em uma série de DVDs de percussão pela Hudson Music. Rob e Neil, apesar de amigos, se falam pouco - cerca de uma ou duas vezes por ano. Sabendo da paixão do baterista por esportes na neve, Rob decidiu fazer uma selfie com sua casa em Nova York ao fundo durante o inverno rigoroso, enviando como lembrança ao baterista.

Coincidentemente, quando Rob entrou em casa após a foto, recebeu uma misteriosa mensagem em sua caixa postal. Uma senhora idosa dizia estar ligando de Colorado Springs, contando a história dela e de seu marido terem encontrado uma bolsa anos atrás, a qual estava esquecida na garagem deles. Recentemente, quando foram limpar e organizar o local, eles se depararam com a bolsa, dizendo que havia alguns papéis com o nome de Neil escrito neles, datados de 2004, um relógio muito bom e o telefone de Rob. Quando soube da história de onze anos atrás, Neil, que estava em Los Angeles, ficou mistificado.

Selfie de Rob Wallis em sua casa em Nova York - 04/02/2015

Tendo o músico relatado a história da perda em seu livro Roadshow, ele era constantemente perguntado sobre ter encontrado a bolsa. Sempre respondia, balançando a cabeça, "Infelizmente não".

"E agora - presto! - a bagagem com o conteúdo estava de volta à minha vida. Imagine perder uma mala ou uma caixa de papelão cheia de objetos pessoais por dez anos. A princípio, os itens desaparecidos se mostrariam dolorosamente reais e pessoais, e sua perda lhe faria mal. Com o passar dos anos, esses objetos deixariam de estar "ligados" em você - ou você deixa de estar ligado a eles - e todos vão sendo substituídos em sua vida por novas versões. Como uma daquelas histórias de viagem no tempo, em que uma pessoa ou objeto não podem aparecer duas vezes no mesmo lugar - são um kit de barbear fantasma, um relógio de ouro fantasma, binóculos, anel fantasma e assim por diante".

Após o problema, Peart inclusive substituiu o local para bagagens da BMW por caixas de alumínio - ele nunca mais confiou nas originais.

A BMW R1200GS de Peart com compartimentos de alumínio para bagagens

Neil e Michael eram amigos de Leo, um policial de uma cidade vizinha a Colorado Springs. Michael ligou de volta para a senhora, sugerindo que alguém fosse ao seu encontro para pegar a bolsa. Ele explicou que um policial iria visitá-la, e ela concordou, confortada. Neil disse a Michael que enviaria a recompensa anunciada no jornal da época, insistindo que não aceitaria "não" como resposta.

Leo conheceu a senhora Carole e seu esposo Rusty, explicando se tratar pessoas genuinamente boas e doces. Ambos estavam com setenta anos, resistindo em uma vida difícil, e só haviam conseguido casar há poucos anos. Rusty foi comerciante por toda a vida, com as mãos endurecidas e roupas manchadas de tinta, e o casal morava próximo à um estacionamento para trailers. Ao lado de sua casa móvel, havia dois galpões cheios de ferramentas e equipamentos, onde a bolsa foi guardada até ser coberta e esquecida.

A bolsa, perdida em junho de 2004, foi encontrada em fevereiro de 2015 | Foto por Leo

A iniciativa de Carole para o contato veio após ela decidir dar uma "limpeza na vida" com seu esposo, insistindo para que Rusty arrumasse as coisas. Quando a bolsa apareceu, ele pediu para que ela encontrasse o dono.

Quando Leo entregou o envelope, Rusty não abriu. O policial disse, "O único momento no qual ele falou bastante foi quando contou sobre como ficou impressionado quando viu como a bolsa estava cheia, sabendo que o dono pilotava uma moto e era um viajante sério. Carole em nenhum momento perguntou sobre o dono do relógio, mas pensava sobre o quão importante ele deveria ser para que fizesse tantas pessoas ligarem nos últimos dias. Eu agradeci e eles voltaram para o trailer juntos".

Neil ficou contente em ter dado mil dólares ao casal, o que poderia significar algo bem-vindo para pessoas naquelas circunstâncias. Um ou dois dias depois, Michael recebeu uma mensagem de voz de Carole dizendo que não esperavam nenhuma recompensa, mas que haviam ficado encantados com a "quantidade de dólares".

Ao receber a bolsa enviada por Leo, Peart teria que decidir o que fazer com o material. Por exemplo, o que ele faria com os dois relógios idênticos Patek Philippe? Escolhendo o certo, ele decidiria vender um deles para devolver o dinheiro pago pela companhia de seguros na época.

Nesse momento, o músico teria que escolher entre o valor sentimental do primeiro relógio, com o qual ficou dois anos, e a posse muito mais longa do segundo, que carregava há dez. Ele avaliou que o antigo havia ficado na garagem por muito tempo, exposto ao clima adverso do local - alternadamente quente e congelante - precisando por isso de alguns reparos. Decidiu colocá-lo ao ar livre acertando a hora, deixando o mesmo funcionar por toda a noite, quando notou que precisaria ter o óleo substituído. A pulseira de couro também necessitava ser trocada, esta que, por estar fechada por tantos anos, impregnou mau cheiro em todos os outros objetos que estavam na bolsa. O Macallan, por sua vez, por ter ficado em um ambiente de temperaturas extremas, corroeu a tampa de plástico da garrafa, vazando e também contribuindo para o forte odor.

O relógio, perdido há 11 anos, ainda funciona

Maravilhado com a história, Neil pediu ao amigo Leo um relato completo de tudo o que aconteceu:

"Perguntei a Rusty como ele encontrou seus pertences. Há cerca de 11 anos, ele dirigia sua camionete ao longo da Ridge Road, que na época era conhecida como Highway 24. Ele lembrou de ter visto o que parecia inicialmente ser um tronco no meio da estrada. Rusty pegou a bolsa e colocou na parte de trás de sua camionete. Quando chegou em casa, a abriu e descobriu uma bolsa preta menor. Foi nessa altura que ele sentiu que não deveria tê-la aberto - ele não sabia o porquê, sentindo apenas que não deveria vasculhar e que deveria tentar entregá-la de volta ao dono, fazendo uma rápida identificação de informações. Ele disse que lembrava de ter visto um kit de ferramentas para a reparação de pneus, um relógio e uma agenda. Foi inflexível em explicar que o proprietário era um motociclista viajante sério, afirmando que a pessoa que havia embalado os objetos era um profissional que sabia o que estava fazendo, devido a forma das roupas estarem enroladas, os tipos de ferramentas, os mapas, as lanternas - tudo apontava para um piloto muito experiente. Rusty deixou uma mensagem para alguém contatá-lo, mas não recebeu resposta, indo até a garagem para guardar a bolsa em uma prateleira. Muitos outros itens foram colocados na mesma garagem com o passar dos anos, como equipamentos caseiros, serras industriais, peças, objetos pessoais etc., tudo devido à natureza do seu trabalho, o que acabou sepultando a bolsa, a qual ele simplesmente esqueceu".

Leo ainda perguntou a Rusty porque ele não havia se interessado em vasculhar, pegando o relógio e vendendo os itens. Ele respondeu, "Havia algo nessa bolsa que não me deixava me sentir bem em fazer isso". Ele não sabia explicar se significava para ele uma intervenção divina, a vontade de Deus ou a combinação dos dois, somente algo que lhe dizia para devolvê-la ao dono.

"Conhecer esse pano de fundo me deixou ainda mais impressionado com a simples benevolência desse homem, e com a senhora "doce, genuína e boa" que realizou o movimento de pegar o telefone para realizar uma chamada cara para o outro lado do país, guiada apenas por uma pista", diz Peart. "Leo informou que Carole havia tentado alguns dos primeiros números da minha agenda, mas que não funcionavam mais. Como ela pôde chegar em Rob Wallis pela ordem alfabética? E quais eram as chances de Rob estar com o mesmo número de telefone depois de todos esses anos? Mas agora me lembrei que Rusty havia encontrado meu número de celular em 2004 - e este continua o mesmo - impresso na parte de trás do meu livro. Eu o havia escrito abaixo de "Informações Pessoais", com um aviso inconfundível em tinta azul, "NEP - Para chamadas e recompensa". De qualquer forma, e de alguma forma, por fim funcionou".

"Só demorou um pouco – um pouco mais de dez anos".

"Após falar com Michael, escrevi para Kevin Anderson para contar-lhe sobre essa resolução incrível e totalmente inesperada da história. Dirigindo-me descontroladamente a Kevin, o prolífico autor de contos fantásticos, escrevi sob o título, 'Você acha que poderia bolar um conto sobre milagres inacreditáveis?'".

"Naturalmente, Kevin se lembrou do incidente, e também ficou completamente atônito. Não tenho certeza se o papa declararia isso como um "milagre" propriamente dito, sem vidas salvas pela mágica intervenção de amigos invisíveis (nova definição de disputas religiosas: "'o meu amigo invisível pode detonar o seu amigo invisível'"), mas vamos lá - do que mais você poderia chamar?"

"Nesse mundo confuso e louco, tudo o que sei é que se trata de um tipo de história com um final agridoce, mas que renova a fé na humanidade. Uma pequena mancha escura no meu passado, com seu nebuloso desvanecimento de dor e pesar, de repente explode em uma estrela brilhante de alívio e gratidão".


Máquina do Tempo: junho de 2004 - fevereiro de 2015 | Foto por Leo