ENTREVISTA COM NEIL PEART PARA A REVISTA PROG



06 DE JANEIRO DE 2015 | POR VAGNER CRUZ

A edição 52 (janeiro de 2015) da revista britânica Prog apresenta uma reportagem de destaque com o Rush. A capa traz uma belíssima colagem com quarenta imagens relacionadas à banda, oferecendo uma nova entrevista com Neil Peart juntamente com uma série de pequenas declarações de quarenta fãs famosos, que comentam a carreira dos canadenses e suas músicas favoritas. A entrevista com Peart, intitulada New World Man, é assinada por Phil Wilding. Confiram o material, traduzido por nosso amigo e colaborador Leo Skinner.

New World Man
Por Phil Wilding

Enquanto o Rush se encontra refinando seus planos para o futuro, Neil Peart nos concede uma de suas entrevistas mais pessoais e reveladoras, discutindo sobre si mesmo, sobre suas paixões e sobre seus pensamentos em torno o futuro do Rush, Phil Wilding é todo ouvidos...

As nuvens baixas e a neblina acabam de evaporar após uma luta do Sol de Los Angeles para se firmar ao longo da costa de Santa Monica. O ar ainda tem cheiro de chuva e Neil Peart está do lado de dentro admirando o jardim. A casa ainda está em silêncio – assim como a maioria dos dias, ele é o primeiro a se levantar – e enquanto conversávamos, ocasionalmente o interfone tocava para checar em qual parte da casa Neil estava. Em seu escritório, como se vê, Neil, na carreira de autor, comenta seu novo livro, Far And Near: On Days Like These (lançamento informado com exclusividade no Rush Fã-Clube Brasil) - um segundo volume das bem recebidas memórias de viagens que compõem Far and Near: A Prize Everytime, de 2011, que já está nas prateleiras. Há também a abordagem do trabalho como baterista e letrista no Rush – histórias e reflexões de suas turnês Time Machine e Clockwork Angels, as quais compõem a maior parte do livro – e a vida como um pai de segunda viagem. Para alguém extremamente cauteloso (escreveu a letra de Limelight afinal) ele está surpreendentemente aberto em relação a sua filha Olivia, de cinco anos, e a vida que leva agora na Califórnia. Constantemente inquieto e consumido pela sede por viagens, Neil Peart soa como um homem que encontrou um lar.

Como está a Califórnia na manhã de hoje?

Está ótima, tivemos um pouco de chuva e agora tudo parece melhor.

O último livro parece ser mais reflexivo do que o primeiro...

Acho que é tudo sobre mim como um expectador. Cada vez mais percebo o por quê da minha presença no mundo; gosto de observar, especialmente em um veículo em movimento e sobre uma motocicleta, o mundo que vem até você como um show e estou muito atento a isso. Um exercício de escrita que eu sempre faço é que, não importa o que que eu esteja olhando, penso, "Como posso colocar isso em palavras?" Boa parte de Ghost Rider foi escrito diretamente para um amigo meu, que acabou ficando temporariamente encarcerado na época, então eu ficava sempre observando o mundo à minha volta e discutindo meus sentimentos comigo mesmo, em termos do que eu poderia escrever para ele. Isso soa muito como o personagem daquele livro; eu descrevo a escrita como sendo uma série de cartas diferentes para alguém.

O novo livro reflete o tom de Ghost Rider: é uma leitura muito honesta, quase totalmente aberta em algumas partes.

Eu tento falar sobre a minha dor e sobre o que aconteceu comigo no livro porque isso ajuda as pessoas. Ghost Rider é de longe meu livro mais lido e isso meio que me confunde, porque os outros são muito mais alegres de ler. Mas há certas pessoas que sofreram o mesmo tipo de experiência e perdas que o acharam útil, então me esforcei para compartilhá-las. Procurei compartilhar essas coisas para tentar ajudar pessoas a saberem que elas não estão sozinhas, porque saber que eu não estava sozinho também me ajudou.

Você iniciou no ciclismo enquanto estava em turnê em Utah em meados dos anos 80. O que estimulou essa decisão?

Era apenas um dia de folga da turnê e pensei, "O que posso fazer? Já sei, vou comprar uma bicicleta!" E esse foi o começo do mundo sobre duas rodas para mim.

A maioria das pessoas teria ido à um bar.

Posso dividir minha vida de turnês em duas fases, porque percebi logo na primeira em 1974 que isso não era um tipo de vida, que havia muito tempo livre e isso era potencialmente muito auto-destrutivo. Comecei a ler desde então, preenchendo todas as horas livres com a educação que perdi, me aprofundando em todos os gêneros. Essa foi a fase dos livros, e depois na casa dos trinta, comecei com o ciclismo e depois o motociclismo, que se tornaram um escape das turnês, uma injeção da vida, de liberdade, de compromisso com o mundo, e ainda é algo que amo.

Você se lembra de como foi a transição da bicicleta para a motocicleta? Foi bem definida?

Sempre tive medo de motos! Sempre disse que, quando crescesse, teria uma moto e ela seria uma BMW, e não aconteceu até meus quarenta e tantos anos, quando decidi que estava tão crescido quanto imaginava. Dessa forma, comecei a andar e a perceber que, "Oh, essa vai ser uma ótima maneira de passar as turnês", porque andar de bicicleta foi ótimo. Em um dia de show em que eu estivesse nervoso para tocar, passeava de bicicleta pela cidade e visitava o museu de arte local, tendo um passeio e educação ao longo do caminho, por isso o motociclismo se tornou uma maneira de tornar isso mais intenso.

Então, ao invés de arte, eu poderia ir aos parques nacionais e desaparecer no deserto e montanhas, até as pradarias. O mundo que eu sinto na moto é o mundo real. Entre os shows, calculo que viajei cerca de 805 quilômetros, e nenhum deles em auto-estradas.

Motos, carros, um incrível Aston Martin como o que James Bond costumava dirigir...

Mostro fotos dele para as pessoas e elas me dizem, "Oh, esse é meu carro dos sonhos", e eu digo, "É o meu também!" Estou longe de estar cansado disso, e claro, aprecio totalmente. Passo muito tempo em torno dos meus carros, e venho fazendo várias corridas esse ano numa série chamada 24 Hours of LeMons. Os carros não devem valer mais que 500 dólares, têm que ser essencialmente latas velhas e você participa de uma corrida de resistência. Nossa equipe se chama Bangers and Mash!

Você se tornou agora um escritor de viagens completamente realizado.

Interesso-me pela escrita em prosa desde os anos 70. Fui a uma loja em Little Rock, comprei uma máquina de escrever e comecei; tentei um romance, tentei um roteiro, tentei de tudo. Então, no começo dos anos 80, fiz uma viagem de bicicleta pela China e conscientemente decidi não levar a câmera comigo, tentando capturar a jornada em palavras, voltei e fiz disso o meu primeiro diário de viagem. Percebi que era isso que eu queria seguir, então foi uma ideia feliz. Trabalhei na escrita por 20 anos antes de alguém vê-la. Tive tanta sorte; gostaria de ter tido o mesmo luxo com a música.

Você e o autor Kevin J. Anderson colaboraram juntos no romance Clockwork Angels. Foi uma experiência gratificante, muito cansativa ou ambas?

Trabalhar no romance foi fantástico para mim. Terminamos há pouco os quadrinhos dele com uma editora chamada BOOM!. Kevin e eu não queríamos deixar esse universo e ele sugeriu que poderíamos continuar com vários personagens menores, detalhando suas histórias. O próximo irá chamar Clockwork Lives. Ainda não terminei esse projeto. Acho que poderia ser uma opera no sentido clássico; seria fantástico.

Você está constantemente escrevendo, letras também: conte-nos sobre seu 'depósito de sucata'.

Coleciono pedaços o tempo todo; se tenho uma frase legal que goste ou um possível título, eu os anoto. Ao voltar às anotações (chamo isso de pescar no depósito de sucatas), aquela frase vai com aquela que pode encaixar com aquela, muito de nossos materiais nasceram dessa forma. Sei que o título Roll the Bones esteve em meu depósito de sucata por uma década ou mais.

Suas letras soam quase que fantásticas às vezes, mas a realidade é que você se concentra em temas muito universais: você escreve muito mais sobre o homem comum do que dá créditos.

Tento encontrar um cerne particular nas coisas para encontrar o universal. Outro dia estava pensando sobre nossa canção Distant Early Warning, que é de... 1983? Estava observando o que meus amigos passavam na época, as dificuldades no trabalho e no casamento, e no que o mundo passava também, quando os Soviéticos derrubaram aquele avião de passageiros e todas essas coisas acontecendo lá fora. Queria isso naquela canção, e o pequeno tempero dela, a letra 'you sometimes drive me crazy, but I worry about you' é a vida, sabe? Essa é uma das poucas vezes, dentre todas as canções que escrevi, onde há apenas um punhado de frases que realmente poderia replicar, sabe, sem parar, e essa é de fato uma delas.

Há outras?

Outra é aquela frase de Presto, 'what a fool I used to be', porque é sempre verdade. "Oh, ontem eu era tolo, mas não hoje!". Essa é uma canção que eu gostaria de tocar ao vivo novamente; espero que possamos algum dia. Adoro a forma como a revitalizamos, tocando na frente de um público. Há outra chamada Hand Over Fist que tem os mesmos elementos pessoais e universais que eu realmente adoraria reviver, porque nós sempre dissemos que se pudéssemos refazer um álbum, um álbum que poderia ter sido muito melhor onde as canções são muito melhores do que o álbum em si, provavelmente Presto seria aquele que escolheríamos.

Duas turnês do Rush aparecem em peso no livro – Time Machine e Clockwork Angels – foram turnês muito diferentes?

Sem dúvida, um caráter diferente mesmo. Clockwork Angels foi muito satisfatória em vários níveis, a música que estávamos apresentando, a forma como sentíamos que estávamos tocando como banda, a forma que estava acontecendo, ter os violinistas. Socialmente, acho que as pessoas poderiam esquecer do dia a dia em nossas vidas: essas novas pessoas entrando em nosso mundo, com cada passagem de som diária terminando com nós três voltando para conversar por um tempo, de modo que foram doses de novidade, diversão e entretenimento para nós - de socialização.

Vocês ainda devem sentir falta de estarem em turnê com outras pessoas.

Costumávamos ter bandas de abertura, sabe? Alguém me mandou uma foto nossa com o UFO outro dia. Éramos muito próximos deles, musicalmente e pessoalmente, foi realmente prazeroso. Foi uma boa decisão, precisávamos sair por nossa conta sem uma banda de abertura, mas sinto falta de uma parte disso: sinto falta da socialização.

Ainda não há datas do Rush confirmadas – Alex sugeriu que pode haver, Geddy não tinha tanta certeza – mas onde você está sobre turnês agora? A ideia ainda lhe encanta ou lhe deixa entediado?

É um verdadeiro dilema, não há uma resposta certa. As pessoas me perguntam, "Você ainda fica empolgado quando sai em turnê?" Eu deveria me empolgar por deixar minha família? Não, e ninguém deveria. É tão simples quanto isso: se você deixar de lado essa fantasia, é o que é e tem que ser feito, é bom e vou despejar toda minha energia e entusiasmo, mas, claro, fico divido sobre a ideia.

Você escreve muito amorosamente sobre sua filha Olivia no livro: qual a idade dela agora?

Ela tem cinco e novamente com separações, é de partir o coração. Venho fazendo isso por 40 anos, sei como compartimentar as coisas, posso estar sentido saudades dela, mas não posso aguentar ela sentindo minha falta. Isso é doloroso e impossível para ela entender. Como uma criancinha processa isso? E há a culpa que vem, você se sente culpado, claro. Estou causando dor.

Mas parte de você ainda anseia por tocar?

Eu, Ged e Alex nos encontramos há cerca de um mês, e há pouco estive em Toronto e todos nós nos reunimos e discutimos coisas. Tocar foi a atividade que mais queríamos fazer, embora ainda não dispormos das decisões reais. Estamos na casa dos sessenta anos e sentimos que com Clockwork Angels ao vivo alcançamos uma excelência com a qual ficamos muito orgulhosos e satisfeitos, mas tocar é a coisa mais difícil, de longe. Você pode mexer no estúdio até sua velhice, mas ir lá e tocar, especialmente bateria, para mim é como uma condição atlética - queremos usá-la enquanto ainda a temos.

Fonte: Power Windows (Transcrição original em inglês por Eric Hensen)