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PEDRA, PAPEL E TESOURA
Por Neil Peart

Escrever uma história sobre como é gravar um álbum é como gravar um álbum. Você nunca acha que está bom, então continua tentando. No passado falei sobre os estúdios, as pessoas com as quais trabalhamos, o clima, nossos métodos de trabalho - muito sobre o que fazemos, mas nada sobre o porque fazemos e nada sobre como os sons se desenvolvem. Então talvez seja tempo de tentar navegar em um barco com fundo de vidro nessas águas turvas.

Um desses caras franceses, Balzac ou Flaubert, disse que um romance deveria ser aplicado na composição também. "Refletindo sobre a vida" poderia unificar o tema da odisseia do Rush ao longo dos anos - embora, é claro, nunca tenhamos pensado nisso na época. Estávamos muito ocupados nos movendo pela estrada como a maioria das pessoas. Pelo menos, quando você se move rapidamente, tem que olhar adiante; com tempo apenas pra observar no retrovisor pra ter certeza de que não há nenhuma luz vermelha.

Para insistir na metáfora em um senso geral: todos nós estávamos nos movendo pela estrada com espelhos diferentes, e não refletimos a vida somente, nós a respondemos. Filtramos as coisas através de nossas próprias lentes e respondemos de acordo com nossos temperamentos e humores. Como o fazendeiro Zen diz: "É por isso que eles fazem gravatas de cores diferentes".

E é por isso que eles fazem músicas de diferentes sonoridades também. Para bater outra metáfora em apresentação: em termos musicais, o Rush não é muito como um espelho, mas uma antena parabólica se movendo pela estrada, captando diferentes estilos, métodos e projetos. Quando chega a hora de trabalhar em músicas novas, você liga o decodificador, "desfiltra" suas lentes, ativa o detector de esterco, checa o retrovisor e tenta desesperadamente desvirar suas metáforas.

Quando nós três começamos a trabalhar em um novo álbum, NÃO temos nenhuma ideia de onde chegar. Existe apenas o desejo de fazer, e a confiança de que podemos. O mal estar de começar do nada é dissipado com a primeira ou segunda canção, mas o mistério ainda permanece - no verdadeiro sentido, nós não sabemos o que estamos fazendo. Sabemos que parece certo; sabemos que é o que queremos fazer naquele momento, mas não sabemos o que somar a isso. E geralmente não saberemos por um bom tempo - até bem depois do lançamento do álbum, quando todos terão suas palavras sobre ele. Portanto isso parece cristalizar em nossas próprias mentes, e desenvolvemos uma pequena objetividade sobre o assunto - que estamos felizes, ou onde poderia ter sido melhor.

E é aí que a progressão começa - onde poderia ter sido melhor. Como uma banda e como indivíduos, nós sempre temos uma agenda oculta, um subtexto de motivação que é baseado em insatisfação com o último trabalho, e o desejo de melhorar. Essa agenda mudou conforme mudamos; quando começamos, apenas queríamos aprender a tocar, e às vezes nossas músicas eram apenas veículos para nossos experimentos técnicos e para a Alegria da Indulgência. Mas, ainda assim, tocar é a nossa base - A Pedra - e o rock são nosso tipo de rocha favorito. Apesar das nossas brincadeiras com outros estilos, a energia, a flexibilidade e a atitude do rock é o que prevalece atraente para nós. Exercitamos nossos dedos e exorcizamos nossos demônios tentando cada nota que pudermos alcançar, e cada compasso que pudermos contar em nossos dedos. Mas, depois que nos divertimos com esses brinquedos, as músicas por si só começam a atrair nossos interesses. Rock não é feito apenas de rocha, e queremos aprender mais sobre transmitir o que sentimos da forma mais poderosa que conseguirmos. Papel embrulha a rocha - a canção os mantém tocando, dá estrutura e significado.

Mais experimentos surgiram conforme perseguimos esse objetivo, e esses experimentos nos levaram para o campo dos arranjos. Sentimo-nos mais satisfeitos com as partes das músicas e de como as tocamos individualmente e também como uma banda. A forma como montamos as mesmas ficou mais importante. Tesoura corta o papel - o arranjo molda as músicas, dando-lhes mais foco e equilíbrio. Assim, nossos álbuns reelegeram esse interesse, brincando com a estrutura melódica e rítmica em busca da melhor interpretação possível da canção.

Todas essas qualidades - arranjo, composição e musicalidade - adicionam uma coisa: apresentação. Além da ideia, apresentação é tudo e deve tomar essa faísca de possibilidade, a ideia, a partir do potencial do ouvido interno de realizar o trabalho. Em uma canção ideal, a música transmite os sentimentos e as letras do pensamento. Alguma sobreposição é desejável - você quer ideias na música e emoções nas letras - mas o vocal às vezes carrega esse fardo, o trabalho de casar os pensamentos e sentimentos.

Assim como o objetivo desses pensamentos e sentimentos é atingir o ouvinte e esperar ser respondido, o sucesso depende do melhor equilíbrio possível de estrutura, som e habilidade.
Tesoura, papel e pedra. Antes nos concentrávamos mais ou menos que exclusivamente em cada um deles, agora gostamos de pensar que cada elemento fora armazenado na "caixa de ferramentas", e que estamos tentando aprender a fazer malabarismos com eles de uma só vez (apesar que malabarismos com tesouras podem ser terrivelmente desagradáveis).

Ao mesmo tempo, a agenda oculta do Rush tem um escopo amplo. A apresentação de nossa música deve cumprir várias exigências: tem que estar acima de tudo, além de ter que ser interessante, desafiadora de tocar e se manter satisfatória a longo prazo – quando a tocamos noite após noite na estrada. A gravação deve ser capturada tão bem quanto o homem e as máquinas podem fazer, e também ser satisfatória de se ouvir, tão bem quanto apta a se tornar a performance de "referência", aquela que iremos tentar recriar em cada um desses estágios.

Antes de fazer Presto, deixamos esses níveis de lado por um tempo. No fim da turnê Hold Your Fire, lançamos o álbum ao vivo e o vídeo A Show of Glands – Quero dizer, Hands. Isso porque estávamos prestes a assinar com uma gravadora diferente, a Atlantic, e nos encontrávamos livres de prazos e obrigações – pela primeira vez em quinze anos – então decidimos fazer mais. Tivemos um tempo de folga, conhecemos a nós mesmos e nossas famílias outras vez e, de forma geral, nos afastamos da maquinaria infecciosa que é o Rash – quero dizer, Rush.

Isso era algo bom e importante, embora fosse uma das poucas vezes em nossa história que o futuro era duvidoso – nenhum de nós sabia de fato o que poderia acontecer a seguir. Depois daqueles seis meses de hiato, quando Geddy e Alex vieram até minha casa discutir nosso futuro, não havia nenhum senso de compulsão sobre o assunto – era uma simples questão sobre o que queríamos fazer. Decidimos que queríamos fazer um novo álbum. As razões ainda são elusivas, mas a motivação parece óbvia: algo a ver com mais uma chance de nos expressarmos, de tentar comunicar o que nos interessa em palavras e música e o mais simples de tudo: uma chance para tocar. Em ambos os sentidos. Sem nenhuma obrigação sobre nós, vimos que ainda estávamos animados em fazer musica juntos, e realmente queríamos fazer algo novo.

Para Presto, como todos os nossos álbuns recentes, começamos com uma viagem ao interior. Alugamos uma casa com um pequeno estúdio em um extremo e uma escrivaninha no outro, e todas as coisas de sempre no meio. Durante as tarde brilhantes de inverno, Geddy e Alex trabalharam no estúdio desenvolvendo as ideias musicais em um gravador portátil, enquanto eu sentava na minha escrivaninha no outro lado, observando as árvores cobertas de neve e escrevendo as letras. No final do dia eu vagava pelo estúdio, cubos de gelo quebrando e ouvindo o que eles haviam feito até o momento e, se tivesse sorte, os mostrava algo novo. Era uma situação perfeita; isolados, embora perto de Toronto o bastante para que pudéssemos nos deslocar para nossas casas nos fins de semana e com o estúdio e nossos lares conectados. Sempre que tínhamos ideias para compartilhar, poderíamos correr de ponta a ponta com fitas e pedaços de papéis.

Pessoalmente, essa é a minha parte favorita de tudo o que fazemos: apenas nós três e alguns caras para manter a máquina funcionando. Não temos mais nada com que nos preocupar a não ser escrever novas músicas, e fazer delas o melhor que pudemos. Com poucas distrações, podemos nos concentrar no trabalho e também sentir a recompensa: a emoção de criar coisas, de responder às ideias de cada um e a gratificação instantânea de gravar admiráveis novas canções. É nessa hora que temos a resposta real do nosso trabalho; é novo o suficiente para ser tão emocionante para nós quanto esperamos que seja para o ouvinte.

E é aqui onde o coprodutor entra em cena. Peter Collins, que trabalhou conosco em Power Windows e Hold Your Fire, disse que sentia que sua carreira precisava de mais variedade e alcance, e relutantemente pulou fora do nosso álbum seguimte. Nesse ponto já tínhamos aprendido como fazer um disco por nossa conta se quiséssemos, mas ainda queríamos um Ouvido Objetivo, alguém cuja opinião e ideias pudéssemos confiar. Uma vez que já tínhamos o papel e a pedra, queríamos alguém para nos ajudar com as tesouras.

De alguns candidatos diferentes, Rupert Hine foi o único que decidimos. Rupert é compositor, cantor e tecladista por conta própria, e fez aproximadamente quinze álbuns seus, além de produzir mais de setenta para outras pessoas como Tina Turner, Howard Jones e The Fixx. Todas essas experiências, combinadas com suas ideias e entusiasmo, fez de sua entrada valiosa, particularmente nas áreas dos arranjos de teclados e vocais. Estávamos um pouco confusos quando tocamos as músicas para ele pela primeira vez, e no final de algumas, ele pareceu estar rindo! Olhamo-nos com as sobrancelhas levantadas como se disséssemos: "Ele acha que nossas músicas são engraçadas?" Mas evidentemente que era uma risada de prazer; ele ficou até o final.

Nos últimos oito anos Rupert e o engenheiro Stephen Tayler trabalharam juntos como uma equipe de produção, e por insistência de Rupert trouxemos Stephen para trabalhar atrás da mesa conosco. Ele era rápido como engenheiro, decisivo, entusiasta, e sempre capaz para evocar o som desejado. Seu infalível bom humor, como o de Rupert, contribuíram para fazer de Presto as sessões mais relaxadas que desfrutamos em anos. Mas foi como jogador de vôlei que Stephen realmente brilhou, por unanimidade votado como "a defesa do ano" nos nossos jogos da meia noite no Le Studio.

Após um longo dia de trabalho, nos acumulamos do lado de fora carregados pelo ar leve do começo do verão nas Laurentides. Encharcamos-nos com repelente de insetos e nos reunimos na grama artificialmente iluminada, assumindo nosso lado e fazendo um tipo de "St. Vitus Dance" para espantar os mosquitos.

Ocasionalmente um de nós acertava a bola na direção certa – mas não com frequência. A maioria das vezes era jogada no lago ou perdida completamente entre as madeiras escuras e assustadores ("Tudo Bem, eu pego.") Estávamos encantados com os esforços de Rupert tanto no vôlei quanto nas nossas músicas. Porém, na verdade, todos nós tivemos nossos momentos – as risadas contribuíram mais para o jogo do que as habilidades. E se as bebidas francesas bidestiladas subtraíam nossas habilidades, elas adicionavam as nossas gargalhadas.

Entre os jogos o grito aparecia: "Beba!", e obedientemente corríamos para a linha de copos de conhaque na varanda. Richard, o guaxinim, colocou sua face mascarada debaixo das escadas querendo saber o que era todo aquele barulho. "Richard!" gritamos, e a pobre besta assustada corria para debaixo dos degraus, e corríamos rindo de volta a quadra. Os refletores prateavam a grama, uma ilha de luz separada do mundo, como um palco.

Nesse palco, no entanto, deixamos de fora a unidade por excelência; sem pressão de dentro, sem expectativas dos outros. Os erros não são uma maldição, mas uma causa para risos e, nesse palco, jogar é o negócio – podemos esquecer que também temos que trabalhar juntos.

Trabalhar juntos, jogar juntos, assustar pequenos mamíferos juntos: estamos nos divertindo? Sim, estamos. E sim, agora penso nisso, o porquê fazemos o que fazemos, e o porquê continuamos fazendo: divertimo-nos juntos. O quão entediante seria se não acontecesse isso. Não apenas isso, mas trabalhamos bem juntos, equilibrando o outro como um espelho de três lados, cada um refletindo uma visão diferente, mas todos se movendo juntos. Como o fazendeiro Zen diz: "A vida é como joquempô: nenhuma das respostas está sempre certa, mas cada uma às vezes está".