FAITHLESS



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HOPE  FAITHLESS  BRAVEST FACE


FAITHLESS

I've got my own moral compass to steer by
A guiding star beats a spirit in the sky
And all the preaching voices -
Empty vessels ring so loud
As they move among the crowd
Fools and thieves are well disguised
In the temple and market place

Like a stone in the river
Against the floods of spring
I will quietly resist

Like the willows in the wind
Or the cliffs along the ocean
I will quietly resist


I don't have faith in faith
I don't believe in belief
You can call me faithless
But I still cling to hope
And I believe in love
And that's faith enough for me

I've got my own spirit level for balance
To tell if my choice is leaning up or down
And all the shouting voices
Try to throw me off my course
Some by sermons, some by force
Fools and thieves are dangerous
In the temple and marketplace

Like a forest bows to winter
Beneath the deep white silence
I will quietly resist

Like a flower in the desert
That only blooms at night
I will quietly resist
DESCRENTE

Eu tenho minha própria bússola moral para me orientar
Uma estrela guia supera um espírito no céu
E todas as vozes em pregação -
Vasos vazios que soam tão alto
Enquanto se movem no meio da multidão
Tolos e ladrões estão bem disfarçados
No templo e no mercado

Como uma pedra no rio
Contra as cheias de primavera
Resistirei silenciosamente

Como os salgueiros ao vento
Ou penhascos ao longo do oceano
Resistirei silenciosamente


Eu não tenho fé na fé
Eu não acredito na crença
Você pode me chamar de descrente
Mas ainda me apego à esperança
E acredito no amor
E isso é fé suficiente para mim

Tenho meu próprio nível espiritual para o equilíbrio
Para saber se minha escolha está me erguendo ou declinando
E todas as vozes clamorosas
Tentam me desviar do meu curso
Alguns por sermões, outros pela força
Tolos e ladrões são perigosos
No templo e no mercado

Como uma floresta que se curva ao inverno
Sob o profundo silêncio branco
Resistirei silenciosamente

Como uma flor no deserto
Que floresce apenas à noite
Resistirei silenciosamente


Música por Geddy Lee e Alex Lifeson. Letra por Neil Peart


Para alguns, a esperança e o amor superam religiões

Após o intervalo instrumental com "Hope", a nona faixa de Snakes & Arrows é reservada à "Faithless". O Rush se lança nesse momento em outra composição cadenciada propondo imagens e melodias lindíssimas, adornada por elementos orquestrais graciosos que ajudam a expor outro ponto de vista sincero de Neil Peart.

Soando como um hino, "Faithless" continua a característica do álbum de se basear na alternância entre peso e passagens mais doces e ritmadas. Muito rica em detalhes, texturas e complexidades sutis, seu esplendor é deflagrado no groove de baixo e bateria dando lugar à mudanças de compasso engenhosas, propondo arranjos e vocais sensíveis coroados por outro solo pungente de Alex Lifeson. A banda decide fundir o antigo, o raro e o novo novamente, criando uma atmosfera única e introspectiva que ajuda na quebra dos limites da percepção. Temos aqui a riqueza de bases acústicas, a utilização de um Mellotron (teclado polifônico inglês desenvolvido no início da década de 1960) e cordas do compositor e multi-instrumentista canadense Ben Mink, amigo de longa data que já havia participado de "Losing It" (Signals, 1982) e do álbum solo de Geddy Lee, My Favorite Headache, lançado em 2000.

"Outra coisa que descobrimos durante as gravações foi o Mellotron", lembra Geddy. "Eles tinham um lindo desses no Allaire. Decidimos colocá-lo para funcionar em algumas canções, especialmente em 'Faithless', ajudando a acrescentar todo o sentimento orquestral que buscávamos. Mas nossa versão acabou tendo mais em comum com o King Crimson do final da década de setenta do que com uma orquestra de verdade. Queríamos utilizar um tipo de orquestra em glissandos, mas eu teria que tocar modulando isso no Mellotron, que consistia em encontrar a posição correta no botão, marcar com fita e mover o mesmo para outra nota, marcando novamente. Eu ia ficar parecendo o Rube Goldberg".

"Essa música traz outro arranjo que foi uma verdadeira façanha, articulando combinações de compassos 3/4 e 4/4, mas num andamento lento e bom para nós"
, explica Peart. "Logo no início da composição, Geddy, em tom de brincadeira, lamentou: 'Porque todas as nossas músicas têm que ser tão rápidas!'. Apesar da associação óbvia com o nosso nome (e honestamente com nossa natureza transmitida por ele), decidimos tentar algo um pouco menos frenético".

"A canção atinge uma imponente majestade como resultado, principalmente nos refrões. De fato, os refrões são ainda mais abrandados com duas batidas por minuto. Foi a primeira vez que tentei esse dispositivo quase imperceptível para o ouvinte ou até mesmo para mim enquanto tocava, e que acabou até trazendo mais peso. Esse andamento mais lento também me deu um quadro diferente para as construções de preenchimento e fixação, o que me permitiu explorar algumas novas direções nessa área".

"Particularmente, foi divertido tentar as ações no chimbal figurando antes dos vocais nas pontes, e acho que essas pontes trazem estilisticamente um tipo de referência do começo de Bill Bruford e de Phil Collins. Um pouco de Nick Mason volta para os versos e refrões, embora exista um pouco de 'mim mesmo' lá também, sendo passivo-agressivo novamente. E tenho mais um grande baterista a mencionar: ouvi recentemente 'Purple Haze' no rádio, que rapidamente me lembrou de como a influência de Mitch Mitchell tem aparecido na minha bateria. Acho que você pode ouvir claramente sua inspiração em alguns dos preenchimentos que toquei próximo do final. Também adorei a ideia de Booujze para o delicado toque militar na caixa que vai sumindo bem no finalzinho. Nós bateristas chamamos isso de 'metáfora existencial'"
.

"Faithless", assim como a clássica "Subdivisions" de Signals (que visitava o julgamento e afastamento daqueles que não se enquadram em grupos com determinado padrão pré-estabelecido) é outra faixa de efeito polarizador para muitos fãs. A questão da fé entre os integrantes nunca foi tratada como um grande segredo comercial, e Peart tem sido bastante franco em suas letras sobre as religiões organizadas - especialmente nos trabalhos mais recentes, com destaque para o próprio Snakes & Arrows.

"Em outubro de 2006, tínhamos onze músicas prontas em estado bruto, e os temas das letras eram evidentes. Pensamentos sobre espiritualidade e fé surgiram em diversas delas: 'Whirlwind life of faith and betrayal' ['Vida redemoinho de fé e traição'], como sugerido em 'Far Cry', e depois também expressado em 'Armor and Sword', 'The Way the Wind Blows' e 'Faithless'".

Em 2004, durante a turnê de 30º aniversário do Rush, Peart rejeitou as confortáveis viagens com a banda entre as apresentações para cruzar a América em cima de sua motocicleta (conforme narrado dois anos mais tarde em seu livro Roadshow: Landscape With Drums: A Concert Tour by Motorcycle). Ele ficou impressionado com a quantidade de outdoors religiosos expostos ao longo das estradas que trafegava, principalmente no Sul dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo que notava uma América cada vez mais evangélica, ele observava que o fundamentalismo e o fanatismo religioso ao redor do mundo estavam em franca ascensão - além dos aproveitadores em pequenas e grandes escalas.

"'Faithless' é uma daquelas canções que vieram, em grande parte, dos pensamentos que tive enquanto escrevia o livro Roadshow, depois de ter sido bastante exposto ao cristianismo evangélico do Sul dos Estados Unidos. Ao passar por estradas secundárias e pequenas cidades, tentei lutar contra isso ou chegar a algum tipo de acordo, algo que tomou grande parte das minhas viagens. Acabei agarrando esses questionamentos no sentido da necessidade. Para mim há dois tipos de fé: uma boa, que pode servir como proteção e para ajudar pessoas e uma má, que é militante e que tenta matar. Nessa canção, quis expressar em primeiro lugar que você não precisa de uma fé religiosa para ter uma crença moral - uma bússola moral e um espírito elevado, as duas metáforas que escolhi. Pensei, 'Bem, tenho esse tipo de coisa: um forte senso do que é certo e errado, um senso de compaixão e um senso de caridade que nunca seriam contingenciados - eu não seria punido ou recompensado por eles'".

Em "Faithless", Peart afirma que, embora exista uma grande quantidade de religiões, pregadores e seguidores, é possível fazer julgamentos morais sábios com base no próprio senso pessoal de conduta - sem amarras condicionais. Também, como a segunda faixa "Armor and Sword", não há aqui uma crítica deliberada à religião, mas àqueles que a utilizam como pretexto para oprimir ou ferir os que divergem. Conforme observado em grande parte do disco, o lado bom da fé refere-se à sua utilização como uma proteção e blindagem - mas há o lado agressivo, instável e potencialmente perigoso. Com "Faithless", Peart descreve sua própria percepção no que diz respeito à moral (tema que se aproxima de faixas como "The Color of Right" e "Resist", de Test For Echo), afirmando que não é preciso que religiões ou crenças ditem a maneira de ser do homem, mas que o próprio indivíduo tem a capacidade e poder para avaliar se suas escolhas lhes prejudicam ou não.

Curiosamente, o letrista utiliza ideias contidas num texto do Novo Testamento como âmago da canção. O Apóstolo Paulo, na primeira carta aos Coríntios 13:13, detalha as virtudes da fé, da esperança e do amor, estando estas disponíveis como dons de Deus. "Assim, permanecem agora estes três: a fé, a esperança e o amor. O maior deles, porém, é o amor". Na visão de Peart, porém, esses elementos seriam frutos de um trabalho humano habitual e concreto, sendo necessário o cultivo dos mesmos para integrá-los ao sonho de moldar uma nova realidade. O músico também pondera o significado da fé de forma paradoxal, utilizando a linguagem inerente à crença para expressar o posicionamento negá-la sem uma justificação racional. Mesmo aceitando ser chamado de "descrente", ele afirma que crer na esperança e no amor trazem a representação da fé que lhe é suficiente.

Embora o tema de "Faithless" se afaste das religiões afirmando o humanismo, o símbolo da "estrela guia" figura a volta os olhos de Peart aos céus na busca de direção. Em "The Pass" (de Presto, 1989), há uma metáfora semelhante: "Dreamers learn to steer by the stars" ("Sonhadores aprendem a se orientar pelas estrelas
"), imagens podem remontar inicialmente tempos antigos, nos quais marinheiros observavam pragmaticamente as estrelas para guiar seus navios, mas também a exposição da fé na fixidez típica de um fenômeno natural. Mesmo que a mensagem seja secular, a própria poesia dá vida e expressão ao celestial, o que denota que o pensamento do letrista aponte para a verdadeira essência.

O trabalho lírico em "Faithless" sugere o entendimento da fé como multidimensional, tanto em suas manifestações seculares quanto religiosas. A essência do conceito é a incerteza - um compromisso com a verdade sem uma prova absoluta e total, mas com seu objeto não se revelando apenas como uma entidade sobrenatural intangível. Num mundo limitado pelas ambiguidades, algumas formas de fé são necessárias para uma vida diária normal, e é essa a natureza exposta por Peart: uma espécie de necessidade secular. Se a esperança funciona como um tipo de paixão imbuída e uma orientação da vontade para o futuro de possibilidades favoráveis, então provavelmente ela nunca será totalmente explicada ou comprovada através de meios verbais e lógicos.

Além das reações que acabam naturalmente opondo a religião, Peart oferece em "Faithless" uma declaração pessoal e renovada dos seus pontos de vistas humanísticos, que podem definir a faixa como uma espécie de manifesto secular. Ele traz um olhar que desvia da afirmação de valores humanos e esforços divinamente planejados, ratificando sua crença central de que pessoas de carne e osso são os verdadeiros autores de todos os valores humanos, não havendo nada perceptível para além deste mundo - nada sobrenatural ou celestial definindo valores ou destinos. Embora o amor e a esperança pareçam ser as palavras finais na visão do letrista, seus posicionamentos mais recentes devem ser vistos como complementares à ideias anteriores, como as virtudes elogiadas em canções como "Anthem" (de Fly By Night, 1975), "Freewill" (de Permanent Waves, 1980) e "Vital Signs" (de Moving Pictures, 1981) ainda importantes na busca pelo fim último da felicidade da vida humana. Mesmo que essas reflexões filosóficas não representem o tipo de mentalidade de muitos, a música do Rush tem contribuído com ideias para uma vida humana mais digna de ser vivida.

Geddy Lee afirmou em entrevista posterior ao lançamento do álbum que se sente intimamente relacionado com a letra de "Faithless". "'Faithless' é uma canção sobre sistemas de crenças, trazendo uma declaração pessoal de Neil nesse sentido. Se você olhar para o refrão, que para mim é a parte mais importante, vai perceber que ele fala sobre a vida de alguém que não é muito religioso e que não frequenta de igrejas - mas que é uma pessoa. Você pode chamá-lo de ateu, poderá chamá-lo de tudo o que quiser, mas existem muitos que não se identificam com a prática de uma religião em particular. Há muitos que encontram seu próprio caminho, que encontram em si mesmos sua própria espiritualidade e que encontram coisas para acreditar relacionadas à maneira na qual vivem. E é sobre isso que a canção trata. Sabe, acreditar na esperança, acreditar no amor: essas são duas coisas com as quais você pode contar e acreditar, e não há muitas coisas com as quais pode contar nesse mundo. Outros entendem que seja um grande conforto encontrar a religião e obter sua força nela, e isso é bom. Porém, há muitas pessoas que não fazem dessa maneira. Acho que a canção é sobre esses".

"Acho que há um monte de coisas que Neil quis abordar sobre religião e sobre sua influência em muitos aspectos das nossas vidas, e acredito que ele realmente acertou o prego bem na cabeça em várias canções"
, diz Lifeson, sobre a direção lírica do álbum. "É uma questão de sobrevivência de fato, e acho que esse disco é muito positivo no final. Você só trabalha seu caminho, e espera o melhor".

Portanto, assim como em Vapor Trails, Peart revela em "Faithless" um pouco mais de suas opiniões e posicionamentos pessoais - dessa vez descrevendo a representatividade da fé para sua própria vida. Por seu ponto de vista, a fé religiosa não se faz tão imprescindível para o fortalecimento de atributos como caráter e moral. Trata-se da descrição de sua maneira de enxergar a realidade com relação à religião, observando uma conjuntura que se mostra cada vez mais hostil aos que decidem por caminhos diferentes. A resistência tranquila ao convencimento pelos sermões ou pela força revela um homem que tenta viver pautado na racionalidade, prudência e como um indivíduo normal, seguro e feliz - da melhor forma que pode.

Peart se expõe como uma das inúmeras pessoas ao redor do mundo que se aproximam do ateísmo, do agnosticismo, do humanismo e do ceticismo e que se sentem oprimidos na expressão das suas reações. Não há nenhum tipo de exortação ou militância em "Faithless" - apenas a descrição clara de uma filosofia pessoal. O Rush sempre teve a capacidade de pensar e considerar histórias e costumes que são oferecidos regularmente, mas sem comprá-los em definitivo.

Snakes & Arrows é um disco tempestuoso, que traz o reflexo do clima social e político atual confrontando crenças religiosas e guerras, abordando também as ideias de sorte e destino, questionando a noção de fé e estendendo diferentes percepções num turbilhão de incertezas, mas conseguindo ainda assim transmitir convicção e esperança nesse tempo tão conturbado.

© 2016 Rush Fã-Clube Brasil