ENTREVISTA COM NEIL PEART PARA O JORNAL TORONTO STAR



27 DE JUNHO DE 2007

Por Ben Rayner
Tradução: Vagner Cruz


No último sábado, dia 28 de abril, Neil Peart concedeu uma ótima entrevista ao jornal canadense Toronto Star. O baterista falou basicamente sobre todo trabalho realizado no álbum Snakes & Arrows, desde suas inspirações na composição das letras até os momentos agradáveis que o grupo experimentou no estúdio com o produtor Nick Raskulinecz. Um dos melhores momentos dessa entrevista foi, sem dúvida, a afirmação em torno das canções que irão fazer parte da nova turnê que, segundo o músico, estão livres do formato "Greatest Hits" que marcaram as duas últimas, Vapor Trails e R30, abrindo assim espaço para canções há muito não executadas e também para outras nunca tocadas ao vivo.

MAIS PRÓXIMO AO CORAÇÃO

Mesmo sendo o homem responsável por colocar palavras muito bem pensadas na boca de Geddy Lee durante três décadas, Neil Peart raramente fala em público.

A principal razão, sem dúvida, é o simples desejo humano de privacidade, especialmente em se tratando do baterista, que desperta de um período terrível que passou no final dos anos de 1990, quando perdeu sua esposa e sua filha de apenas 19 anos em um espaço de apenas 10 meses.

Mesmo concedendo poucas entrevistas nesse período, Peart foi autor de quatro obras autobiográficas sobre suas viagens – The Masked Rider, Traveling Music, Ghost Rider e o mais recente Roadshow: Landscape With Drums. Além dos livros, o baterista atualiza religiosamente o conteúdo do seu site pessoal NeilPeart.net, o que nos leva a crer que talvez agora ele prefira arejar seus pensamentos de uma maneira diferente.

No momento da entrevista, o encontrei trabalhando arduamente em seu notebook, com um cigarro na mão, tentando terminar um artigo sobre o último romance de Dave Eggers para ser disponibilizado na seção Bubba's Book Club do seu site. Peart tem estado muito ocupado, se dedicando de maneira árdua para estar em forma na próxima turnê do Rush. O kit do virtuoso e lendário baterista reluzia num balcão atrás dele.

Mesmo com o prolongado período na estrada, o Rush não tocará em Toronto até os dias dias 19 e 22 de setembro, quando realizará dois shows no Air Canada Centre – parte da turnê do álbum Snakes & Arrows, lançamento da banda que previsto para a próxima terça-feira. Esse álbum é o primeiro trabalho com novas composições desde Vapor Trails, de 2002.

Co-produzido pelo jovem Nick Raskulinecz, de 36 anos (Foo Fighters, Velvet Revolver), Snakes & Arrows é poderoso e traz um som completamente contemporâneo, atualizado a partir da fórmula clássica do elevado musicalismo do Rush, trazendo verdadeiros hinos com formas líricas muito rebuscadas. Traz em seu conteúdo, de forma incisiva, temas como amor e principalmente fé.

"Não houve nenhum problema em Nick ser o mais jovem. Na verdade, um espírito de afinidade e entusiasmo esteve sempre presente durante todo esse trabalho", diz Peart que, como seus amigos Geddy Lee e Alex Lifeson, está com 54 anos e aprecia o fato de ter alguém observando de fora as ideias da banda no estúdio. "Sempre gostamos de ter alguém com esse espírito – não apenas para ouvirmos sua voz ou opinião, mas alguém com uma visão panorâmica das coisas. Alguém para nos encorajar, para nos empurrar com ideias de arranjos, ideias de performances".

"Foi exatamente isso que o Nick trouxe pra gente. É claro que sabemos como arranjar, gravar e produzir uma canção. Poderíamos ter agido tranqüilamente sozinhos, mas sabemos que seria bem melhor se não o fizéssemos"
.

Na verdade, a banda ficou surpresa com o profissionalismo precoce de Raskulinecz demonstrado no estúdio. Peart confiou no produtor, fã de longa data do Rush, que demonstrava suas ideias para o baterista na forma air-drums, levando o trio já renomado a tocar em outros níveis (sua expressão favorita era "Só peço isso a vocês porque sei que podem fazer") e se recusando a deixar de repetir nas novas músicas as glórias passadas da banda. Nick foi um vigoroso distribuidor de tarefas, tanto que Peart é forçado a dizer, "Estou com bolhas de sangue lindas por todos meus dedos, tentando emular aquelas performances".

Sobre as novas letras do baterista, as mesmas mostram-se ainda difícies de se definir em termos de fontes – Richard Dawkins e psicologia evolucionária são suas atuais inspirações – mas há também, em larga escala, experiências pessoais de suas viagens de moto por estradas da América e Europa durante a turnê R30, em 2004.

Neil passou por vários locais religiosos durante suas viagens, muitos narrados em Roadshow. Foi nesses momentos que ele começou a avaliar que não poderia "ficar neutro" em torno da religião. Snakes & Arrows revela algumas de suas conclusões em canções como "Armor and Sword" e "The Way the Wind Blows", que refletem a desmoralização da fé através da opressão e da guerra, e em "Faithless", no qual rejeita a participação de poderes superiores em favor de uma fidelidade humanista para a própria "bússola moral".

"Viajei por várias estradas secundárias em cidades pequenas e observei muitas placas de igrejas", diz Peart. "Algumas delas eram até divertidas, dizendo coisas como: 'Se você foi dar um passeio com o diabo, logo logo ele vai querer pegar o volante'. É fantástico. Já outras eram bem arrogantes, com aquelas cruzes enormes e citações da bíblia. O que te leva a pensar que tudo aquilo está certo? Tentei me imaginar sendo guiado pela lua crescente e a estrela dizendo, 'Não há deus a não ser Alá e seu profeta Maomé'. Ou com uma estrela de Davi dizendo, 'Aquele carpinteiro não era o nosso messias'. De certa forma isso me faz rir, mas de outra, vejo que é algo fodido".

"É tão arrogante que não dá pra mensurar. Estou tentando pesar tudo aquilo... Não quero fazer inimigos de forma gratuita, mas decidi me pronunciar sobre o assunto porque, se não o fizesse, estaria sendo conivente. Sei que é um discurso difícil, mas se você não falar pela razão, estará falando sem razão"
.

Durante toda a conversa, Peart se mostrou minado com todas as suas experiências em viagens, mas mesmo assim se revelou também um tanto quanto rancoroso por ser um participante desse processo.

É duro quando o Rush cai na estrada – a turnê Snakes & Arrows começa em Atlanta no mês de junho e termina no dia 29 de outubro em Helsinki – e todo esse processo cansativo tem representado um conflito interior do baterista de uma das mais exaltadas bandas de rock do mundo.

Pensando em manter a banda ainda atrativa aos fãs, ele diz que o Rush se sente agora um tanto quanto "liberado" depois de realizar verdadeiros greatest hits nas turnês de três anos atrás. O baterista diz que dessa vez a banda irá se dedicar ao novo material e em "canções antigas que não tocamos há anos ou que nunca tocamos". Uma dessas joias de 1980 está nos planos, só que ele não disse qual.

"A primeira vez que disse que abandonaria as turnês foi em 1989, e falei isso em todas as turnês seguintes", lembra Peart, sorrindo. "Nunca concretizei essa afirmação e sempre foi recompensador pra mim. É algo árduo e repetitivo, mas é parte do trabalho. Amo treinar, ensaiar. Adoro o que estamos fazendo agora, aprendendo as novas canções e de também estarmos tocando juntos e nos entrosando como banda. Tudo isso é muito legal, mas são seis meses da minha vida que eu definitivamente não vivo. Não terei minha vida novamente até novembro".

"O que uma banda faz? Uma banda toca ao vivo. Isso é fundamental e é o que me mantém longe de desistir a todo momento. É óbvio para mim que, se pararmos de tocar ao vivo, vamos deixar de crescer. Não daria certo. Uma banda de verdade para nós é isso, e esse é o motivo pelo qual aceito o que temos que fazer. Nenhum trabalho é o céu – lembro disso a todo tempo e me sinto grato por ter feito essa escolha".

"Conheço muitas bandas da nossa geração que trabalham em clubes, tocando para públicos em cerimônias apenas para dizerem que estão vivos. Nós ainda podemos, todos os anos, optar por fazer turnês em grandes locais, viajando de ônibus ou moto. De forma alguma estou sendo cínico sobre isso".

"Passei o último ano em casa escrevendo um livro, e compondo novas canções que renderam um bom material. O que fazemos – nos reunir para criar um novo material – é a razão do trabalho".

"Fazer as mesmas coisas repetidamente... como isso pode ser bom se você se colocar de uma maneira superficial?"


Fonte: Toronto Star