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WAR PAINT
girl before the mirror
appraises her disguise
child become a mother
tries to fix her eyes
no more of his excuses
it has to be today
she can keep her fantasy
if she can get away
paint her name on a one-way street
painted cheeks with angry heat
wounded pride on painted eyes
paint the night with battlecries
all puffed up with vanity
we see what we want to see
to the beautiful and the wise
the mirror always lies
boy before the mirror
checks his camoflauge
polishes his armor
and the charger in the garage
no more lame excuses
it has to be tonight
he can take the princess
if he can take the fight
pound the drums with martial beat
pound the streets with marching feet
wounded pride, distorted eyes
paint the night with battlecries
all puffed up with vanity
we see what we want to see
to the powerful and the wise
the mirror always lies
boys and girls together
mistake conceit for pride
- ambition for illusion
- dreams for self-delusion
girls and boys together
see what it is we lack
boys and girls together
let's paint the mirror black
paint it black
girl before the mirror
appraises her disguise
child become a mother
tries to fix her eyes
no more of his excuses
it has to be today
she can keep her fantasy
if she can get away
paint her name on a one-way street
painted cheeks with angry heat
wounded pride on painted eyes
paint the night with battlecries
all puffed up with vanity
we see what we want to see
to the beautiful and the wise
the mirror always lies
boy before the mirror
checks his camoflauge
polishes his armor
and the charger in the garage
no more lame excuses
it has to be tonight
he can take the princess
if he can take the fight
pound the drums with martial beat
pound the streets with marching feet
wounded pride, distorted eyes
paint the night with battlecries
all puffed up with vanity
we see what we want to see
to the powerful and the wise
the mirror always lies
boys and girls together
mistake conceit for pride
- ambition for illusion
- dreams for self-delusion
girls and boys together
see what it is we lack
boys and girls together
let's paint the mirror black
paint it black
PINTURA DE GUERRA
a menina diante do espelho
avalia seu disfarce
a criança se torna mãe
tenta corrigir seus olhos
chega das desculpas dele
tem que ser hoje
ela pode manter sua fantasia
se conseguir fugir
pinte o nome dela em uma rua de mão única
bochechas pintadas pelo calor da raiva
orgulho ferido nos olhos pintados
pinte a noite com gritos de guerra
todos cheios de vaidade
vemos o que queremos ver
para o belo e para o sábio
o espelho sempre mente
o menino diante do espelho
verifica sua camuflagem
lustra sua armadura
e o charger na garagem
chega de desculpas esfarrapadas
tem que ser essa noite
ele pode levar a princesa
se conseguir partir para a ofensiva
golpeie os tambores com o toque marcial
golpeie as ruas com os pés em marcha
orgulho ferido, olhos distorcidos
pinte a noite com gritos de guerra
todos cheios de vaidade
vemos o que queremos ver
para o poderoso e para o sábio
o espelho sempre mente
meninos e meninas juntos
confundem presunção com orgulho
- ambição com ilusão
- sonhos com auto-engano
meninas e meninos juntos
vejam o que nos falta
meninos e meninas juntos
vamos pintar o espelho de preto
pinte-o de preto
a menina diante do espelho
avalia seu disfarce
a criança se torna mãe
tenta corrigir seus olhos
chega das desculpas dele
tem que ser hoje
ela pode manter sua fantasia
se conseguir fugir
pinte o nome dela em uma rua de mão única
bochechas pintadas pelo calor da raiva
orgulho ferido nos olhos pintados
pinte a noite com gritos de guerra
todos cheios de vaidade
vemos o que queremos ver
para o belo e para o sábio
o espelho sempre mente
o menino diante do espelho
verifica sua camuflagem
lustra sua armadura
e o charger na garagem
chega de desculpas esfarrapadas
tem que ser essa noite
ele pode levar a princesa
se conseguir partir para a ofensiva
golpeie os tambores com o toque marcial
golpeie as ruas com os pés em marcha
orgulho ferido, olhos distorcidos
pinte a noite com gritos de guerra
todos cheios de vaidade
vemos o que queremos ver
para o poderoso e para o sábio
o espelho sempre mente
meninos e meninas juntos
confundem presunção com orgulho
- ambição com ilusão
- sonhos com auto-engano
meninas e meninos juntos
vejam o que nos falta
meninos e meninas juntos
vamos pintar o espelho de preto
pinte-o de preto
Um olhar sobre as ilusões e consequências da vaidade
"War Paint" é a quarta canção de Presto, uma composição forte, repleta de energia e certeira, envolta por climas cativantes em um ótimo trabalho instrumental, este que mescla e equilibra com destreza movimentos gerais básicos com tomadas mais complexas.
Após a emocional e tocante "The Pass", o Rush toma a decisão de prosseguir com uma faixa mais vigorosa. Apresentando uma temática que observa novamente dramas juvenis, "War Paint" expõe o quadro obsessivo dos jovens em pintar disfarces na busca de se adequarem a uma maioria. Em linhas globais, Peart explora alguns dos sentimentos e desdobramentos que acompanham a vaidade, provocando reflexões sobre o fato de que podemos enganar outras pessoas, mas jamais a nós mesmos.
A música, à primeira vista, soa como uma canção rock de atmosferas relativamente simples, mas que esconde detalhes e peculiaridades muito interessantes e características do Rush. Para coroar a obra, recebemos outro incrível e belíssimo solo produzido por Alex Lifeson.
"'War Paint' me deixou muito contente, mesmo não sendo uma canção muito complexa", diz Geddy Lee. "Ela começou como uma peça bem simples, e foi marcada pela dádiva de se ter pessoas de fora que lhe empurram em direções alternativas, o que fez toda a diferença. Esse fato me ajudou muito nessa canção, pois a mesma trazia um padrão de baixo constantemente básico e muito simples. Aqui, Neil e Rupert me incentivaram a me aventurar mais melodicamente. No começo estranhei a ideia, mas continuei tentando e experimentando e, antes que eu percebesse, ela havia se tornado uma das minhas melodias de baixo favoritas de todos os tempos. Esse é o exemplo de que não se pode ser objetivo sendo músico. Você precisa de alguém para lhe incentivar, e isso me fez soar mais melódico. O que parece uma ideia estranha para você, no contexto de todo um quadro, pode simplesmente ser a melhor melodia".
"Nesse álbum, buscamos mergulhar na área dos backing vocals", continua. "Adorei realizar essas harmonias, havendo aqui bastante delas para um disco do Rush. Foi muito divertido ir buscá-las, colocando uma fita no carro, dirigindo por aí e ouvindo o arranjo pensando em harmonias".
"Às vezes, sou forçado a tocar coisas que são tão simples que chegam a ser imbecis", admite Peart. "Mas, se é isso que funciona, tenho que aceitar a realidade. Porém, consigo encontrar formas para balancear isso. Na canção 'War Paint' em Presto, por exemplo, a introdução e as seções das pontes são bem idiotas, tão simples que me deixam louco. Mas os refrões me permitiram esticar e tocar algumas coisas realmente gratificantes, onde fui capaz de encontrar maneiras de criar algo mais complexo, fazendo-o soar simples e caindo direto no fluxo da canção. Mesmo trilhando meu caminho por trechos idiotas, sei que haverá uma parte bem legal a seguir e que vou adorar tocar. Sendo uma peça simples ritmicamente, a qual requer apenas uma batida, vou tocar a mesma encontrando algumas pequenas inflexões divertidas que poderei fazer com a outra mão, ou até mesmo algo que a torne complicada de ser feita - alguma coisa que possa torná-la interessante ou difícil".
"Não penso somente no disco nesse contexto. Com uma turnê no horizonte, terei que tocar a canção de novo, de novo e de novo. Isso passa a fazer parte do meu pensamento, com ou sem razão".
Com "War Paint", o Rush observa algumas atitudes, sentimentos e consequências com relação à vaidade, tanto no âmbito feminino quanto no masculino. A canção apresenta uma estrutura lírica similar à "Losing It" (de Signals, 1982) e "Middletown Dreams" (de Power Windows, 1985), descrevendo poeticamente cenas de vidas cotidianas, além de proximidades temáticas com "Subdivisions", "The Analog Kid" (de Signals) e com a própria anterior "The Pass", ao observar também dramas comuns na adolescência. Essa preocupação recorrente, certamente, é proveniente das próprias experiências vividas pelos integrantes nos subúrbios canadenses, entendendo essa época da vida como uma das mais delicadas, sendo a mesma marcada, além das mudanças biológicas, pela transitoriedade, ambivalência e instabilidade - um período suscetível à vulnerabilidade em torno de toda a gama de influências internas e externas, sejam elas sociais, éticas ou morais.
Intencionalmente ou não, a letra de Peart em "War Paint" provoca entendimento por dois prismas. No primeiro deles, trata-se de uma exposição direta das peculiaridades sobre atitudes e desdobramentos provenientes da vaidade, em ambos os sexos. Por outro lado, pode refletir um caso específico que sofre as consequências dessas condutas impensadas, diretamente ligadas a exageros como confiança cega, presunção e ilusões - suscitando, inevitavelmente, decepções e arrependimentos. Nas duas formas interpretativas, o letrista consegue expor claramente suas intenções: as preocupações excessivas com a vaidade podem diagnosticar impasses e desiquilíbrios da nossa própria essência.
Entende-se por vaidade a qualidade daquilo que é vão, que não possui conteúdo e que se baseia em uma aparência falsa. Pensamos também no excesso de valor dado à aparência, aos atributos físicos ou intelectuais, caracterizado pela esperança de reconhecimento ou admiração de outras pessoas. Indo além, trata-se da auto-crítica ou opinião envaidecida sobre si mesmo - uma ideia exageradamente positiva que alguém faz de si próprio.
Inicialmente, a canção retrata cenas de dois jovens, presumivelmente adolescentes. No primeiro verso, observamos uma menina que se prepara esteticamente na frente de um espelho, avaliando suas roupas e retocando sua maquiagem. Na segunda parte, mais precisamente após o refrão, temos um rapaz que, também de frente para o espelho, verifica e ajeita suas roupas, logo após seguindo para cuidar do seu carro na garagem. Ambos, portanto, trazem motivações similares.
Essas símbolos instigam pensamentos sobre as disputas entre homens e mulheres (principalmente adolescentes e jovens, mas que não se restringem a eles), onde cada um busca parecer mais forte que o outro com relação aos poderes de conquista. Tais investidas, na maioria das vezes, levam pessoas a ocultar quem realmente são, criando mecanismos e subterfúgios que protejam sua verdadeira essência. Essas motivações, na maioria das vezes, são motivadas pela superficialidade, modismos e conformidade com o meio.
A partir da figura da menina avaliando seu "disfarce", é interessante observar que, por coerções sociais, algumas jovens se utilizam de atributos de beleza para criar não somente a imagem que desejam, mas para ocultar o que têm medo de mostrar pela aceitação. Na canção, a personagem traz a raiva e o "orgulho ferido nos olhos pintados" ['wounded pride on paited eyes"] por, possivelmente, ter se machucado anteriormente (talvez por ter tentado ser autêntica, ou por já ter sofrido algumas das consequências da sua vaidade). Esse tipo de jogo ou falsa imagem é uma "rua de mão-única" ["one-way street"] - uma vez que a pessoa começa se esconder, é possível que, gradativamente, também se esqueça de quem realmente é.
A frase "a criança se torna mãe" ["child become a mother'] pode referir-se às jovens que recebem essas influências repassadas por seus próprios pais. É provável que o trecho tenha sido baseado na obra My Heart Leaps Up (1802), do poeta romântico inglês William Wordsworth (1770 - 1850). No poema, Wordsworth escreve "child is father to the man" ["a criança é o pai do homem"], onde o menino é influenciado por seu pai contribuindo para o tipo de homem será um dia. Em "War Paint", a menina é motivada por sua mãe, que lhe ensinou os jogos psicológicos (os quais também aprendeu quando jovem), fazendo dessas atitudes um verdadeiro ciclo vicioso.
"Nossa relação com as mulheres não mudou tanto ao longo dos anos - é praticamente status quo aqui", diz Geddy. "Acredito que, agora, esteja ocorrendo uma ligeira mudança em algumas de nossas músicas. Isso foi algo discutido em discos anteriores, eu e Neil na verdade. O ponto de vista feminino ou a descrição de coisas sobre a natureza feminina não apareciam em nossas canções, estando ligados no fundo das nossas mentes".
O segundo momento de "War Paint" apresenta a figura masculina (que também se prepara de frente para o espelho), logo seguindo para lustrar seu carro na garagem. A motivação, aqui, é a guerra da conquista. Seguindo a letra, notamos que o garoto, por sua vez, também se utiliza de um tipo de disfarce. A sociedade não designa que os mesmos que se camuflem com maquiagens, mas sim com carros, esportes ou algum outro atributo que os façam mais fortes que os demais. A motivação: atrair garotas, assim como a menina aprende a utilizar exclusivamente a beleza e apelo sexual a fim de conseguir aqueles que deseja. Neil entende que ambos os sexos estão presos na artificialidade, fingindo ser quem não são e tentando vencer em um jogo sem vencedores, uma vez que não se baseia na verdade. O conteúdo, o fato de se conhecer verdadeiramente alguém, permanece em segundo plano ou até mesmo esquecido. Os rapazes são ensinados a "levar a princesa" ["He can take the princess"] - eis o antigo mito do macho dominante e da fêmea subordinada.
Nesse trecho, a palavra charger traz um trocadilho. Observando que o rapaz faz o polimento da sua armadura (uma associação sobre preparar suas roupas) entendemos, inicialmente, que charger refere-se a um cavalo para batalhas ou um corcel. Porém, na verdade, Peart idealizou um carro - um muscle car Dodge Charger.
O segundo olhar sobre "War Paint" também pode relacionar as histórias dos dois personagens, e perfeitamente. Como consequência de uma gravidez precoce e indesejada, provavelmente por estarem totalmente imersos nesse mundo de engano e vaidade nos relacionamentos, os jovens decidem, por pura impulsividade e insensatez, fugirem juntos e de maneira impensada.
Nesse ponto, já é possível compreender Presto como um disco que trata de sonhos, interioridade, sensações, ilusões e aparências em sua abordagem geral. Em "War Paint", temos a projeção metafórica e essencial dos espelhos, nos quais percebemos, com falhas, a nossa própria imagem. Ele nos mostra o que queremos ver, escondendo os nossos sentimentos e o nosso interior de nós mesmos - tanto quanto escondemos de outras pessoas. O problema dessas confusões internas e externas é quando passamos a não reconhecer quando estamos totalmente tomados por essas ilusões.
Trazendo belos jogos de palavras, o que fica claro em "War Paint" é a preocupação do letrista com a vaidade exagerada. A canção pensa sobre pessoas com baixa estima que precisam de disfarces, as chamadas "pinturas de guerra", que nada mais são do que máscaras psicológicas criadas exclusivamente para o enfrentamento do mundo, para a negação de si mesmas ou para abraçar (acatar) as pressões da generalidade - vivendo imersas em fantasias na opção de não encarar a própria realidade. A letra menciona elementos como a auto-ilusão, processo de nos enganarmos de modo a aceitar como verdadeiro ou válido o que é falso ou inválido, justificando falsas crenças a nós mesmos, e a presunção - tomada de uma suposição como verdade, que pode denotar o ato de exaltação excessiva do ego.
Naturalmente, a composição nos remete ao mito grego de Narciso, um jovem extremamente belo que simbolizava a vaidade e a insensibilidade, emocionalmente tomado pelas solicitações daqueles que se apaixonavam pela sua beleza. O nome já parece indicar o significado de sua existência: uma formosura entorpecente que atordoa e que embaraça todos aqueles por quem é vista. Diz-se que ao nascer, os sábios orientaram sua mãe que jamais deveria deixar o menino olhar para sua imagem em um espelho, pois o choque de sua beleza seria imprevisível. Um dia, no bosque, Narciso parou para tomar água em um lago que ali havia. Ao ver sua imagem refletida nas águas serenas, tal como um espelho, percebeu seus encantos e tão logo os contemplou, se apaixonando. Perdido de amor, deitou-se tentando abraçar a imagem mas, sempre que tocava o lago, ela se desfazia em suas mãos - o que lhe fez definhar como um prisioneiro perpétuo do seu próprio reflexo.
O espelho, ao longo dos tempos, sempre carregou um forte simbolismo - seja para filósofos, para a Igreja ou até mesmo como elemento de conto de fadas. Assim, a chave de "War Paint" encontra-se na afirmação imperativa e destacada "pinte o espelho de preto", ou seja, o abandono do mundo inteiramente mergulhado nas auto-ilusões e presunções, abraçando a realidade e minimizando nossas ações que miram, acima de tudo, o que pensarão de nós ou o que querem que sejamos, na correspondência das expectativas alheias. O conselho de Peart é que deixemos de olhar exclusivamente para o espelho (para o exterior) mas também para nosso interior, não permitindo que a vida seja totalmente dominada pela vaidade ou até mesmo pelo desejo de fazer com que outros fiquem mal enquanto parecemos bem. Assim, a advertência também recai sobre deixarmos de tratar nossas relações como disputas.
A forma como nos vemos é um dos grandes fatores responsáveis pelo que somos. Talvez por isso, o famoso escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749 - 1832), ao analisar condutas e suas expressões, pontuou de forma acurada que "o comportamento é um espelho em que cada um vê a sua própria imagem". Assim, somos vistos por todos e por nós mesmos quando atuamos e nos comportamos na vida. Porém, existe um complicador: a incapacidade inconsciente de repararmos algumas das nossas atitudes e a negação sobre muitos de nossos atos e funcionamentos. O espelho mostra, portanto, a nossa aparência, não sendo capaz de evidenciar como somos de fato e como funcionamos internamente. Cabe a nós tentar decodificar esses impasses e impedir que nos vejamos, involuntariamente, menos ou mais do que devemos ser, pois como analisado por Confúcio, "o coração do sábio, tal como o espelho, deve a tudo refletir, sem, todavia macular-se".
Quando a gana vaidosa e narcísica é um contaminante da lógica de vida, teremos uma série de atitudes centradas em nós preenchidas com necessidades autopromocionais, quase que doentias. Poderemos perceber, naqueles em que esses comportamentos imperam, uma série de relações superficiais e de puro interesse. Assim, a lenda de Narciso é bastante relevante para o teor de "War Paint", pois o espelho mostra nossa própria imagem e, se nos apaixonarmos por ela cegamente, acabamos por nos fechar para o mundo não nos permitimos viver.
Presto, sem dúvidas, reflete um salto artístico notável para o Rush. No desafio de forçar sua música ao longo das diversas fases que compõem sua carreira, a banda jamais perdeu sua sensibilidade e integridade, colocando suas habilidades ao completo serviço da arte. Nesse momento, portanto, eles alcançavam uma maior acessibilidade, mergulhando em perspectivas profundamente pessoais com suas produções.
© 2015 Rush Fã-Clube Brasil
BERTI, J. BOWMAN, D. "Rush and Philosophy: Heart and Mind United (Popular Culture and Philosophy)". Open Court. May 10, 2011.
ROBICHEAU, P. "Rush's Playful Concert Nods To The Past". Boston Globe. May 12, 1990.
STIX, J. "Geddy Lee: Organic". Guitar For The Practicing Musician. June 1990.
CONSIDINE, J.D. "Rush Screwing Up Pop-On Purpose". Musician. April 1990.
COBURN, B. "Geddy Lee On Rockline For Presto". Rockline. December 4, 1989.
BARROS, Eric M. B. "A Vaidade e o Espelho". Stabilis. Acesso em 21 de outubro de 2015.
"War Paint" é a quarta canção de Presto, uma composição forte, repleta de energia e certeira, envolta por climas cativantes em um ótimo trabalho instrumental, este que mescla e equilibra com destreza movimentos gerais básicos com tomadas mais complexas.
Após a emocional e tocante "The Pass", o Rush toma a decisão de prosseguir com uma faixa mais vigorosa. Apresentando uma temática que observa novamente dramas juvenis, "War Paint" expõe o quadro obsessivo dos jovens em pintar disfarces na busca de se adequarem a uma maioria. Em linhas globais, Peart explora alguns dos sentimentos e desdobramentos que acompanham a vaidade, provocando reflexões sobre o fato de que podemos enganar outras pessoas, mas jamais a nós mesmos.
A música, à primeira vista, soa como uma canção rock de atmosferas relativamente simples, mas que esconde detalhes e peculiaridades muito interessantes e características do Rush. Para coroar a obra, recebemos outro incrível e belíssimo solo produzido por Alex Lifeson.
"'War Paint' me deixou muito contente, mesmo não sendo uma canção muito complexa", diz Geddy Lee. "Ela começou como uma peça bem simples, e foi marcada pela dádiva de se ter pessoas de fora que lhe empurram em direções alternativas, o que fez toda a diferença. Esse fato me ajudou muito nessa canção, pois a mesma trazia um padrão de baixo constantemente básico e muito simples. Aqui, Neil e Rupert me incentivaram a me aventurar mais melodicamente. No começo estranhei a ideia, mas continuei tentando e experimentando e, antes que eu percebesse, ela havia se tornado uma das minhas melodias de baixo favoritas de todos os tempos. Esse é o exemplo de que não se pode ser objetivo sendo músico. Você precisa de alguém para lhe incentivar, e isso me fez soar mais melódico. O que parece uma ideia estranha para você, no contexto de todo um quadro, pode simplesmente ser a melhor melodia".
"Nesse álbum, buscamos mergulhar na área dos backing vocals", continua. "Adorei realizar essas harmonias, havendo aqui bastante delas para um disco do Rush. Foi muito divertido ir buscá-las, colocando uma fita no carro, dirigindo por aí e ouvindo o arranjo pensando em harmonias".
"Às vezes, sou forçado a tocar coisas que são tão simples que chegam a ser imbecis", admite Peart. "Mas, se é isso que funciona, tenho que aceitar a realidade. Porém, consigo encontrar formas para balancear isso. Na canção 'War Paint' em Presto, por exemplo, a introdução e as seções das pontes são bem idiotas, tão simples que me deixam louco. Mas os refrões me permitiram esticar e tocar algumas coisas realmente gratificantes, onde fui capaz de encontrar maneiras de criar algo mais complexo, fazendo-o soar simples e caindo direto no fluxo da canção. Mesmo trilhando meu caminho por trechos idiotas, sei que haverá uma parte bem legal a seguir e que vou adorar tocar. Sendo uma peça simples ritmicamente, a qual requer apenas uma batida, vou tocar a mesma encontrando algumas pequenas inflexões divertidas que poderei fazer com a outra mão, ou até mesmo algo que a torne complicada de ser feita - alguma coisa que possa torná-la interessante ou difícil".
"Não penso somente no disco nesse contexto. Com uma turnê no horizonte, terei que tocar a canção de novo, de novo e de novo. Isso passa a fazer parte do meu pensamento, com ou sem razão".
Com "War Paint", o Rush observa algumas atitudes, sentimentos e consequências com relação à vaidade, tanto no âmbito feminino quanto no masculino. A canção apresenta uma estrutura lírica similar à "Losing It" (de Signals, 1982) e "Middletown Dreams" (de Power Windows, 1985), descrevendo poeticamente cenas de vidas cotidianas, além de proximidades temáticas com "Subdivisions", "The Analog Kid" (de Signals) e com a própria anterior "The Pass", ao observar também dramas comuns na adolescência. Essa preocupação recorrente, certamente, é proveniente das próprias experiências vividas pelos integrantes nos subúrbios canadenses, entendendo essa época da vida como uma das mais delicadas, sendo a mesma marcada, além das mudanças biológicas, pela transitoriedade, ambivalência e instabilidade - um período suscetível à vulnerabilidade em torno de toda a gama de influências internas e externas, sejam elas sociais, éticas ou morais.
Intencionalmente ou não, a letra de Peart em "War Paint" provoca entendimento por dois prismas. No primeiro deles, trata-se de uma exposição direta das peculiaridades sobre atitudes e desdobramentos provenientes da vaidade, em ambos os sexos. Por outro lado, pode refletir um caso específico que sofre as consequências dessas condutas impensadas, diretamente ligadas a exageros como confiança cega, presunção e ilusões - suscitando, inevitavelmente, decepções e arrependimentos. Nas duas formas interpretativas, o letrista consegue expor claramente suas intenções: as preocupações excessivas com a vaidade podem diagnosticar impasses e desiquilíbrios da nossa própria essência.
Entende-se por vaidade a qualidade daquilo que é vão, que não possui conteúdo e que se baseia em uma aparência falsa. Pensamos também no excesso de valor dado à aparência, aos atributos físicos ou intelectuais, caracterizado pela esperança de reconhecimento ou admiração de outras pessoas. Indo além, trata-se da auto-crítica ou opinião envaidecida sobre si mesmo - uma ideia exageradamente positiva que alguém faz de si próprio.
Inicialmente, a canção retrata cenas de dois jovens, presumivelmente adolescentes. No primeiro verso, observamos uma menina que se prepara esteticamente na frente de um espelho, avaliando suas roupas e retocando sua maquiagem. Na segunda parte, mais precisamente após o refrão, temos um rapaz que, também de frente para o espelho, verifica e ajeita suas roupas, logo após seguindo para cuidar do seu carro na garagem. Ambos, portanto, trazem motivações similares.
Essas símbolos instigam pensamentos sobre as disputas entre homens e mulheres (principalmente adolescentes e jovens, mas que não se restringem a eles), onde cada um busca parecer mais forte que o outro com relação aos poderes de conquista. Tais investidas, na maioria das vezes, levam pessoas a ocultar quem realmente são, criando mecanismos e subterfúgios que protejam sua verdadeira essência. Essas motivações, na maioria das vezes, são motivadas pela superficialidade, modismos e conformidade com o meio.
A partir da figura da menina avaliando seu "disfarce", é interessante observar que, por coerções sociais, algumas jovens se utilizam de atributos de beleza para criar não somente a imagem que desejam, mas para ocultar o que têm medo de mostrar pela aceitação. Na canção, a personagem traz a raiva e o "orgulho ferido nos olhos pintados" ['wounded pride on paited eyes"] por, possivelmente, ter se machucado anteriormente (talvez por ter tentado ser autêntica, ou por já ter sofrido algumas das consequências da sua vaidade). Esse tipo de jogo ou falsa imagem é uma "rua de mão-única" ["one-way street"] - uma vez que a pessoa começa se esconder, é possível que, gradativamente, também se esqueça de quem realmente é.
A frase "a criança se torna mãe" ["child become a mother'] pode referir-se às jovens que recebem essas influências repassadas por seus próprios pais. É provável que o trecho tenha sido baseado na obra My Heart Leaps Up (1802), do poeta romântico inglês William Wordsworth (1770 - 1850). No poema, Wordsworth escreve "child is father to the man" ["a criança é o pai do homem"], onde o menino é influenciado por seu pai contribuindo para o tipo de homem será um dia. Em "War Paint", a menina é motivada por sua mãe, que lhe ensinou os jogos psicológicos (os quais também aprendeu quando jovem), fazendo dessas atitudes um verdadeiro ciclo vicioso.
"Nossa relação com as mulheres não mudou tanto ao longo dos anos - é praticamente status quo aqui", diz Geddy. "Acredito que, agora, esteja ocorrendo uma ligeira mudança em algumas de nossas músicas. Isso foi algo discutido em discos anteriores, eu e Neil na verdade. O ponto de vista feminino ou a descrição de coisas sobre a natureza feminina não apareciam em nossas canções, estando ligados no fundo das nossas mentes".
O segundo momento de "War Paint" apresenta a figura masculina (que também se prepara de frente para o espelho), logo seguindo para lustrar seu carro na garagem. A motivação, aqui, é a guerra da conquista. Seguindo a letra, notamos que o garoto, por sua vez, também se utiliza de um tipo de disfarce. A sociedade não designa que os mesmos que se camuflem com maquiagens, mas sim com carros, esportes ou algum outro atributo que os façam mais fortes que os demais. A motivação: atrair garotas, assim como a menina aprende a utilizar exclusivamente a beleza e apelo sexual a fim de conseguir aqueles que deseja. Neil entende que ambos os sexos estão presos na artificialidade, fingindo ser quem não são e tentando vencer em um jogo sem vencedores, uma vez que não se baseia na verdade. O conteúdo, o fato de se conhecer verdadeiramente alguém, permanece em segundo plano ou até mesmo esquecido. Os rapazes são ensinados a "levar a princesa" ["He can take the princess"] - eis o antigo mito do macho dominante e da fêmea subordinada.
Nesse trecho, a palavra charger traz um trocadilho. Observando que o rapaz faz o polimento da sua armadura (uma associação sobre preparar suas roupas) entendemos, inicialmente, que charger refere-se a um cavalo para batalhas ou um corcel. Porém, na verdade, Peart idealizou um carro - um muscle car Dodge Charger.
O segundo olhar sobre "War Paint" também pode relacionar as histórias dos dois personagens, e perfeitamente. Como consequência de uma gravidez precoce e indesejada, provavelmente por estarem totalmente imersos nesse mundo de engano e vaidade nos relacionamentos, os jovens decidem, por pura impulsividade e insensatez, fugirem juntos e de maneira impensada.
Nesse ponto, já é possível compreender Presto como um disco que trata de sonhos, interioridade, sensações, ilusões e aparências em sua abordagem geral. Em "War Paint", temos a projeção metafórica e essencial dos espelhos, nos quais percebemos, com falhas, a nossa própria imagem. Ele nos mostra o que queremos ver, escondendo os nossos sentimentos e o nosso interior de nós mesmos - tanto quanto escondemos de outras pessoas. O problema dessas confusões internas e externas é quando passamos a não reconhecer quando estamos totalmente tomados por essas ilusões.
Trazendo belos jogos de palavras, o que fica claro em "War Paint" é a preocupação do letrista com a vaidade exagerada. A canção pensa sobre pessoas com baixa estima que precisam de disfarces, as chamadas "pinturas de guerra", que nada mais são do que máscaras psicológicas criadas exclusivamente para o enfrentamento do mundo, para a negação de si mesmas ou para abraçar (acatar) as pressões da generalidade - vivendo imersas em fantasias na opção de não encarar a própria realidade. A letra menciona elementos como a auto-ilusão, processo de nos enganarmos de modo a aceitar como verdadeiro ou válido o que é falso ou inválido, justificando falsas crenças a nós mesmos, e a presunção - tomada de uma suposição como verdade, que pode denotar o ato de exaltação excessiva do ego.
Naturalmente, a composição nos remete ao mito grego de Narciso, um jovem extremamente belo que simbolizava a vaidade e a insensibilidade, emocionalmente tomado pelas solicitações daqueles que se apaixonavam pela sua beleza. O nome já parece indicar o significado de sua existência: uma formosura entorpecente que atordoa e que embaraça todos aqueles por quem é vista. Diz-se que ao nascer, os sábios orientaram sua mãe que jamais deveria deixar o menino olhar para sua imagem em um espelho, pois o choque de sua beleza seria imprevisível. Um dia, no bosque, Narciso parou para tomar água em um lago que ali havia. Ao ver sua imagem refletida nas águas serenas, tal como um espelho, percebeu seus encantos e tão logo os contemplou, se apaixonando. Perdido de amor, deitou-se tentando abraçar a imagem mas, sempre que tocava o lago, ela se desfazia em suas mãos - o que lhe fez definhar como um prisioneiro perpétuo do seu próprio reflexo.
O espelho, ao longo dos tempos, sempre carregou um forte simbolismo - seja para filósofos, para a Igreja ou até mesmo como elemento de conto de fadas. Assim, a chave de "War Paint" encontra-se na afirmação imperativa e destacada "pinte o espelho de preto", ou seja, o abandono do mundo inteiramente mergulhado nas auto-ilusões e presunções, abraçando a realidade e minimizando nossas ações que miram, acima de tudo, o que pensarão de nós ou o que querem que sejamos, na correspondência das expectativas alheias. O conselho de Peart é que deixemos de olhar exclusivamente para o espelho (para o exterior) mas também para nosso interior, não permitindo que a vida seja totalmente dominada pela vaidade ou até mesmo pelo desejo de fazer com que outros fiquem mal enquanto parecemos bem. Assim, a advertência também recai sobre deixarmos de tratar nossas relações como disputas.
A forma como nos vemos é um dos grandes fatores responsáveis pelo que somos. Talvez por isso, o famoso escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749 - 1832), ao analisar condutas e suas expressões, pontuou de forma acurada que "o comportamento é um espelho em que cada um vê a sua própria imagem". Assim, somos vistos por todos e por nós mesmos quando atuamos e nos comportamos na vida. Porém, existe um complicador: a incapacidade inconsciente de repararmos algumas das nossas atitudes e a negação sobre muitos de nossos atos e funcionamentos. O espelho mostra, portanto, a nossa aparência, não sendo capaz de evidenciar como somos de fato e como funcionamos internamente. Cabe a nós tentar decodificar esses impasses e impedir que nos vejamos, involuntariamente, menos ou mais do que devemos ser, pois como analisado por Confúcio, "o coração do sábio, tal como o espelho, deve a tudo refletir, sem, todavia macular-se".
Quando a gana vaidosa e narcísica é um contaminante da lógica de vida, teremos uma série de atitudes centradas em nós preenchidas com necessidades autopromocionais, quase que doentias. Poderemos perceber, naqueles em que esses comportamentos imperam, uma série de relações superficiais e de puro interesse. Assim, a lenda de Narciso é bastante relevante para o teor de "War Paint", pois o espelho mostra nossa própria imagem e, se nos apaixonarmos por ela cegamente, acabamos por nos fechar para o mundo não nos permitimos viver.
Presto, sem dúvidas, reflete um salto artístico notável para o Rush. No desafio de forçar sua música ao longo das diversas fases que compõem sua carreira, a banda jamais perdeu sua sensibilidade e integridade, colocando suas habilidades ao completo serviço da arte. Nesse momento, portanto, eles alcançavam uma maior acessibilidade, mergulhando em perspectivas profundamente pessoais com suas produções.
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