HERESY



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HERESY

All around that dull gray world
From Moscow to Berlin
People storm the barricades
Walls go tumbling in

The counter-revolution
People smiling through their tears
Who can give them back their lives
And all those wasted years?
All those precious wasted years -
Who will pay?

All around that dull gray world
Of ideology
People storm the marketplace
And buy up fantasy

The counter-revolution
At the counter of a store
People buy the things they want
And borrow for a little more
All those wasted years
All those precious wasted years
Who will pay?

Do we have to be forgiving at last?
What else can we do?
Do we have to say goodbye to the past?
Yes I guess we do

All around this great big world
All the crap we had to take
Bombs and basement fallout shelters
All our lives at stake

The bloody revolution
All the warheads in its wake
All the fear and suffering
All a big mistake
All those wasted years
All those precious wasted years
Who will pay?
HERESIA

Em todo aquele mundo cinzento
De Moscou à Berlim
Pessoas se aglomeram nas barricadas
Muros vão tombando

A contra-revolução
Pessoas sorrindo através das lágrimas
Quem pode devolver suas vidas
E todos aqueles anos desperdiçados?
Todos aqueles anos preciosos desperdiçados -
Quem irá pagar?

Em todo aquele mundo cinzento
De ideologia
Pessoas se aglomeram nos mercados
E compram seus desejos

A contra-revolução
No balcão de uma loja
Pessoas compram coisas que querem
E emprestam por um pouco mais
Todos aqueles anos desperdiçados
Todos aqueles anos preciosos desperdiçados
Quem irá pagar?

Temos que ser compassivos afinal?
O que mais podemos fazer?
Temos que dizer adeus ao passado?
Sim, acho que temos

Tudo nesse mundo imenso
Toda a merda que tivemos que passar
Bombas e abrigos anti-nucleares
Todas as nossas vidas em jogo

A revolução sangrenta
Todas as ogivas em seu rescaldo
Todo o medo e sofrimento
Tudo um grande erro
Todos aqueles anos desperdiçados
Todos aqueles anos preciosos desperdiçados
Quem irá pagar?


Música por Geddy Lee e Alex Lifeson / Letra por Neil Peart


As inúmeras vidas perdidas na Guerra Fria

"Heresy" é a sétima faixa de Roll The Bones, uma das obras mais emocionais produzidas pelo Rush para esse trabalho. Propondo um olhar dramático que mescla erudição com sensações de esperança e condolência, o trio humaniza um dos mais importantes fatos históricos no desenrolar da história contemporânea: a queda definitiva do comunismo na Europa, ocorrida no período de concepção do disco.

A canção tem início com uma breve sessão de bateria em fade in propondo um tom militar, desaguando em um ambiente melódico composto por camadas de sintetizadores e riffs de guitarra cativantes. "Heresy" pode ser resumida como uma composição suave e fluida, munida de paisagens sonoras que evidenciam nitidamente o período de transição de sonoridade atravessado pela banda naquele momento. Certamente, a faixa é a que mais se assemelha com os trabalhos realizados nos anteriores Hold Your Fire (1987) e Presto (1989). É notório que os músicos se afastavam das características que os direcionaram na década anterior, com as guitarras passando a ter mais proeminência e os teclados surgindo apenas como coadjuvantes, sendo utilizados apenas na criação de camadas discretas e pequenos detalhes. Porém, com "Heresy", observamos uma espécie de visita àquele passado recente, soando como um aceno sutil ao que haviam produzido anos antes.

"Às vezes, fazemos coisas apenas para dar um caráter particular à música", diz Alex Lifeson. "Em 'Heresy', executo um trecho acústico no refrão - especialmente no segundo - fazendo o estilo The Byrds. Só queríamos criar o efeito de um grupo de caras sentados tocando".

Um dos padrões de bateria utilizados por Peart em "Heresy" demonstra o quão forte foi sua inspiração internacional. "Em uma noite quente numa aldeia do Togo chamada Assohoum, em novembro de 1989, coloquei meu saco de dormir sobre um telhado para ficar olhando as estrelas em um perfeito silêncio de uma noite africana - sem trânsito, televisão ou rádio, apenas conversas dispersas e cães distantes. Enquanto cochilava, um ritmo vindo de tambores ecoava do outro lado do vale, com dois percussionistas tocando um padrão entrelaçado que ficou na minha cabeça, surgindo meses mais tarde como base para a bateria que utilizei em 'Heresy'. Quando começamos a trabalhar nessa canção, percebi que aquela batida a complementaria muito bem".

"Heresy" prossegue com o tema central de Roll The Bones. Novamente valorizando a vida ao máximo, a faixa observa os fatos decorrentes do desmantelamento do Muro de Berlim, salientando o desalento do desperdício de milhares de vidas durante o período da Guerra Fria, que perdurou de 1945 a 1991. Enquanto historiadores, pensadores, jornalistas e inúmeras pessoas ao redor do mundo comemoravam tais eventos, Neil Peart mostrava uma visão alternativa sobre as reviravoltas monumentais ocorridas naquele cenário, conforme fez em "Manhattan Project", de Power Windows (1985), quando observou o Projeto Manhattan por um prisma diferenciado, sugerindo que os cientistas envolvidos não eram apenas monstros de jalecos brancos.

Com muita perícia, Peart consegue criar imagens notáveis embutindo um fato histórico e seus desdobramentos no contexto do disco, humanizando a desconstrução do Comunismo. "A desconstrução do Bloco do Leste fez algumas pessoas felizes", lembra Peart. "Isso me deixava louco. Então foi tudo um engano? Parecia-me um preço muito alto a se pagar pela ideologia equivocada de alguém. Aqueles resíduos de vida deveriam ser a heresia suprema".

O letrista já havia expressado em composições anteriores ponderações sobre a Guerra Fria, período histórico de disputas estratégicas e conflitos indiretos de ordem política, militar, tecnológica, econômica, social e ideológica entre os Estados Unidos, União Soviética e suas zonas de influência. Canções como "The Weapon" (de Signals, 1982), "Distant Early Warning" e "Red Lenses" (de Grace Under Pressure, 1984 - este que foi bastante influenciado pelo conflito) refletiam, através de pontos de vista variados, preocupações e angústias sobre o período, no qual a humanidade vivia imersa em uma atmosfera de ameaças, opressão e incertezas. Por outro lado, o baterista também pensou sobre a natureza de governos totalitários e coletivistas em vários momentos, evidenciados em canções como "2112" (de 2112, 1976), "The Trees" (de Hemispheres, 1978) e "Red Barchetta" (de Moving Pictures, 1981).

A Guerra Fria, durante suas quatro décadas de existência, promoveu inúmeras mudanças no cenário geopolítico global, com as duas grandes nações, Estados Unidos e União Soviética, buscando a todo custo impor seu sistema político-econômico a outros países. Em "Heresy", Peart retrata com destaque a queda do Muro de Berlim ("Walls go tumbling in"), um dos marcos que simbolizavam o período e que dividia, não só as ideologias socialistas e capitalistas, mas também famílias, amigos e uma nação. O muro era muito mais que uma barreira geográfica: funcionava como um instrumento político-ideológico que restringia, acima de tudo, os relacionamentos entre a população alemã.

"Em 'Heresy', falo sobre o azar de ser nascido na Europa Oriental nesse século", diz Peart. "A queda do Muro de Berlim teve um aspecto trágico, revelando todas aquelas vidas desperdiçadas".

"O tom da canção se desloca do lamento por todas as vidas perdidas, definhadas e desperdiçadas ('Who can give them back their lives, and all those wasted years?') para a indignação com ideólogos e criminosos que perpetuaram tal brutalidade e estupidez ('All those precious years wasted - who will pay?')". Finalmente, a música expressa a aversão descrente dos efeitos na minha própria vida: com dez anos de idade ouvindo sobre as bombas atômicas que os russos poderiam jogar nas proximidades das Cataratas do Niágara ('All that crap we had to take / Bombs and basement fallout shelters / All our lives at stake'). Assim como eu, o mundo vivia sob a sombra de uma guerra nuclear, e agora estávamos simplesmente a aceitar que a 'nobre experiencia' do século vinte havia sido reduzida a uma ideologia que falhara. 'All the fear and suffering - all a big mistake'".

"Houve uma ocasião durante a era nuclear, quando eu viajava para o oeste de Los Alamos no Novo México, que me fez lembrar da terrível sombra de devastação sob a qual crescemos, a qual fez com que meu pai construísse um abrigo nuclear patético no porão do nosso sobrado, onde dormiríamos em sacos, com água e rádios transistores. Essa foi a minha infância, com as pessoas falando da crise cubana e da Baía dos Porcos - eu vivi tudo isso. Tinha dez anos quando os pais do meu vizinho falavam de como os russos estavam certos de que iam bombardear as Cataratas do Niágara, que ficava a trinta quilômetros da nossa casa. Consegue imaginar o que um garoto de dez anos pensava ao ouvir essas coisas? Dessa forma, tudo aquilo me impressionou bastante e para sempre, sendo esse o mundo totalmente frágil em que vivi. Assim, ver os protestos sobre o Vietnã na televisão, todas as lutas pelos direitos civis da época, os assassinatos de Kennedy e do Dr. King - coisas que aconteciam enquanto eu estava em pé na escada do pátio na escola - mudaram o mundo para sempre, e certamente me mudaram também".

Muito além de apenas retratar e celebrar a queda definitiva do regime comunista ditatorial europeu, "Heresy" detalha o desperdício de vidas e lamenta o sofrimento de décadas enfrentado por milhares de pessoas, antes da liberdade ser instaurada naqueles locais. Enquanto as canções anteriores de Roll The Bones ofereciam reflexões partindo de um olhar individual, "Heresy" direciona o foco para a importância da vida em uma escala global.

Classificando a nova liberdade e o simples ato de consumir livremente como contrarrevolucionários, "Heresy" apresenta em seus primeiros versos algumas imagens até então bem vívidas sobre a queda do comunismo, tendo em vista que Roll The Bones fora lançado em 1991. O segundo momento, portanto, desenha as pessoas que pela primeira vez poderiam exercer seus direitos de consumo, com o trecho final trazendo um desabafo sobre os horrores da guerra vividos ao longo dos anos no âmbito ocidental. Assim, "Heresy" observa os impactos e os transtornos que conflitos políticos e ideológicos entre nações podem causar na vida das pessoas, considerando os efeitos nocivos das guerras em geral.

Segundo Geddy Lee, da mesma forma como em "Red Sector A" (de Grace Under Pressure), "Heresy" utiliza a queda do regime comunista para pensar sobre pessoas que passaram por lutas desesperadas durante longos anos e que, subitamente, estavam livres - procurando um caminho para o recomeço. "É um ensaio documental sobre pessoas afastadas da liberdade e que a encontram novamente depois de muito tempo, se perguntando porque lhes foram negados direitos básicos", explica Lee. "Há um sentimento de indignação sobre essa situação. É aquela mistura interna de maravilha e horror quando alguém percebe que teve sua liberdade retirada por tantos anos, para finalmente voltarem atrás. Deve ser um momento doce e amargo. Todos esses anos, tantas vidas perdidas, tantas pessoas lutando e de repente tudo acaba. E o que fazer sobre todas as pessoas que não sobreviveram, que não tiveram a sorte de estarem presentes quando o muro caiu? É uma pergunta sem resposta, mas certamente algo a se pensar".

Retomando a atmosfera de "The Big Wheel", Neil espera que, algum dia, as pessoas olhem para as religiões da mesma forma que olham para a Guerra Fria. Após inúmeras discriminações injustificadas, morte e terror, o baterista deseja que os homens relembrem e lamentem muitos dos posicionamentos provenientes de preceitos religiosos. Ligeiramente, o título de "Heresy" se aproxima do tema da canção anterior, mas, muito além, ele busca refletir sobre os anos perdidos da guerra com o estabelecimento do capitalismo nas antigas União Soviética e Alemanha Oriental. "Parecia - e parece - ultrajante todas as décadas de ansiedade que o planeta suportou, para não mencionar as vidas que definharam nessas terras sombrias, embaixo da sola da bota totalitária por causa de ideologias equivocadas. Espero que algum dia aconteça o mesmo com as religiões".

Anos mais tarde, Peart relatou com detalhes uma de suas viagens pela Alemanha, recordando profundamente a letra de "Heresy". "Em 1991, apenas um ano após a Reunificação, viajei por boa parte da Alemanha Oriental e de olhos bem abertos. Era de fato o 'mundo cinzento' que descrevi no primeiro verso de 'Heresy', com o tímido ressurgimento das cores destacando-se de forma quase extravagante - artigos de plástico baratos nas vitrines, camadas de tinta fresca em casas espalhadas nas vilas, Volkswagens antigos brilhantemente coloridos e BMWs menores em lotes de carros usados, entre Trabants rústicos e fumacentos (estes que foram mundialmente reconhecidos como um dos piores carros de todos os tempos, com seu motor de dois tempos e carroceria feita de 'Duroplast' - um pouco mais forte que papelão). Trabants estão ausentes nas estradas agora, e em breve existirão apenas em museus como artefatos - não arte!".

"O segundo verso de 'Heresy' descreve a ascensão da Europa Oriental e especialmente de lugares como Dresden - tanto das cinzas da guerra quanto do concreto e da ferrugem soviética".

"É terrível refletir que duas gerações inteiras de pessoas - os de meia-idade e os mais velhos que vi nas estradas todos os dias, que geralmente acenavam de passagem - tiveram de suportar aquela repressão, tendo suas vidas impedidas e, para os jovens, uma perspectiva tão limitada de futuro. O refrão de 'Heresy' oferece o que é, talvez, a conformação necessária".

"Vinte anos depois, ainda sentia aquela sensação de injustiça e de raiva, pois aquelas pessoas continuam pagando, literalmente, com suas vidas - enquanto os vilões e ideólogos, que os tornaram tão fracos, se permitiram bancar os heróis enquanto cometiam secretamente crimes horríveis e indescritíveis contra a humanidade - contra tantos seres humanos individuais. 'Todos são iguais', eles insistiam, mas esses poucos eram, obviamente, muito mais iguais que as massas".

"Como a Lei Seca, a ascensão e queda do comunismo é por vezes descrita como um 'nobre experimento'. Porém, seja qual for a maneira com a qual você olha para ele, o coletivismo é precisamente o oposto de nobre. (Certa vez me perguntava sobre os fanáticos por trás tanto do comunismo quanto do fascismo, 'Eram psicopatas malignos ou apenas imbecis equivocados?'. Decidi que eram uma mistura de ambos - a combinação mais mortal da história").

"Fiquei realmente surpreso - e até mesmo chocado - com o fato de Karl-Marx-Stadt estar de volta a Chemnitz
[N. do T.: cidade do estado da Saxônia na Alemanha], enquanto dirigia pela antiga Berlim Oriental ao longo da Karl-Marx-Strasse. (...) Hoje em dia, você não vê nenhuma rua nomeada Hitler ou Stalin, ou São Petersburgo voltando a ser Leningrado, sendo uma aposta segura que nenhum indivíduo na história tem sido a causa de tanta matança e sofrimento quanto Karl Marx. (Seu único concorrente podem ser os imaginários, as divindades - denominadas por Marx e seu camarada Friedrich Engels como 'o ópio do povo'. Se você me perguntar, são mais parecidos com 'cristal de metanfetamina das massas'".

Tendo em vista os assuntos explorados em canções anteriores, como "The Camera Eye" (de Moving Pictures, 1981), "Subdivisions" (de Signals, 1982) e "The Big Money" (de Power Windows, 1985), nas quais Peart pensava sobre algumas das mazelas e contradições provenientes do capitalismo, em "Heresy" o letrista lança suas opiniões pela ótica socialista. O que fica claro é que a canção de Roll The Bones não se limita a uma crítica gratuita ao sistema politico, mas sim na proposição de uma nova exaltação à vida humana, apontando preocupações com sua liberdade e com seu pleno desenvolvimento - fatores que, sem dúvidas, têm sido o foco primordial do seu trabalho com o Rush.

© 2015 Rush Fã-Clube Brasil

PEART, N. "Traveling Music: The Soundtrack to My Life and Times". ECW Press. September 1, 2004.
PEART, N. "Roadshow: Landscape With Drums: A Concert Tour by Motorcycle". Rounder Books. May 14, 2007.
PEART, N. "Shunpikers in the Shadowlands". News, Weather, And Sports. June 2013.
PEART, N. "Row The Boats: The Roll The Bones Tour Book". 1991.
MILLER, William F. "Neil Peart: In Search Of The Right Feel. Modern Drummer. February 1994.
WIDDERS-ELLIS, A. "Rush Redefined". Guitar Player. November 1991.
KOT, G. "Rush Still Feels No Special Need To Hurry". Chicago Tribune. November 1, 1991.
NEAR, D. "Rush: Up Close / Music Profile. Media America Radio. January / February 1994.
LADD, J. "Jim Ladd Interviews Neil Peart". SiriusXM. February 3, 2015.