ENTREVISTA COM O RUSH PARA A ROLLING STONE



18 DE JUNHO DE 2015 | POR VAGNER CRUZ

Rush, de forma inédita, como capa da Rolling Stone
Após 41 anos de carreira efetiva, o Rush é capa da norte-americana Rolling Stone pela primeira vez. Depois de muitas cartas e e-mails enviados por inúmeros fãs sobre o descaso dado à banda ao longo das décadas, a revista vem baixando a guarda nos últimos anos, publicando resenhas positivas para os trabalhos do trio e reconhecendo, mesmo que tardiamente, o grupo como um dos maiores ícones do rock mundial.

O repórter Brian Hiatt conversou com Geddy, Alex e Neil durante os últimos preparativos para a turnê R40, dividindo a entrevista entre os ensaios ocorridos em abril em Los Angeles e a semana de preparação em Tulsa, Oklahoma - local do show de estreia. A matéria abrange toda a carreira do trio, desde a infância dos integrantes, passando pela evolução dos anos oitenta e culminando no último lançamento em estúdio, o disco Clockwork Angels, de 2012.

Mesmo com a reportagem já disponibilizada online, a edição da revista chegará às bancas nessa sexta feira, dia 19/06. A matéria também deverá ser publicada em breve na edição brasileira, porém, trazemos a mesma para vocês em primeira mão e completamente traduzida - um precioso trabalho do nosso colaborador Leo Skinner.

Do Rush, Com Amor
Por Brian Hiatt


Neil Peart dirige tanto bem quanto toca. Em uma tarde ensolarada em meados de abril em Los Angeles, fresco de um ensaio com sua banda Rush para o que poderá ser sua ultima grande turnê, ele acelera o seu antigo e prateado Aston Martin DB5 1964 no estilo Goldfinger, em direção à saída 405 em alta velocidade, reduzindo de forma alguma - acelerar, talvez - em uma curva afiada, perigosa. Como Peart a chama: uma propensão para o gloriosamente excessivo emparelhada a um domínio técnico assustador.

Ele desempenha um papel descomunal dentro do Rush, escrevendo as letras, servindo como a consciência designada da banda, fazendo solos tão longos e estruturados que têm os seus próprios nomes. Para uma certa classe de músicos do rock, o baterista é um deus no nível Clapton em 1966: Dave Grohl chorou após conhecê-lo.

Peart também é um piloto de corrida amador, e um perito em off-ramps, "Pistas de corrida são projetadas para fazer com que contornar uma curva rapidamente seja o mais difícil possível", diz ele por cima do ronco do motor do Aston Martin, mãos firmes no volante enquanto faz a curva. "E algumas rampas, por necessidade, são desse jeito também. Escolhi as minhas favoritas - a rampa em Wilshire na rodovia 405 é incrível".

Aos 62 anos, Peart se assemelha muito a Tom Hanks, com um proeminente, nariz rosado e olhos castanhos em alerta. Ele é alto, veste uma camisa preta, calça cáqui e tênis Prada; ele tem antebraços musculosos e a facilidade física de um atleta, apesar de achar que cresceu como um fracote. É mais amigável pessoalmente do que você espera de um cara que escreveu uma das letras mais "anti-fama" do rock, "Limelight" ("Não posso fingir que um estranho é um amigo há tanto esperado"). Um autodidata rigoroso e um talentoso escritor, quase grafomaníaco, já escreveu vários livros, ensaios e letras com as quais ele não pode nos ajudar implantando notas de rodapé : "Quando escrevi sobre isso, eu disse..."

Alex Lifeson, Geddy Lee e Neil Peart. Foto por Peggy Sirota

Os fãs de Peart o consideram o maior baterista vivo do rock. Ele ganhou os prêmios anuais da revista Modern Drummer 38 vezes. E mesmo aqueles que são alérgicos ao espetáculo da agitação desumana desencadeada de forma vislumbrante, girando uma bateria de mais de 20 peças, devem considerar o talento de Peart para a composição rítmica e dramática: Os fãs do Rush sabem que suas batidas hiper sincopadas e seus preenchimentos temerários detonam por si só. "Neil é o baterista mais air-drumming dos bateristas de todos os tempos", diz o baterista do Police, Stewart Copeland, amigo de Peart, influência e parceiro de jams ocasionais que aponta para um senso de groove exposto : "Neil carrega a banda, a qual tem muita musicalidade, um monte de ideias amontoadas em todas as oito batidas - mas ele mantém a pulsação, o que é uma coisa importante. E ele pode fazer isso enquanto faz todo o tipo de coisas legais".

Neil Peart gosta de se perguntar com algumas questões chaves. Uma delas é "Qual é coisa mais excelente que eu posso fazer hoje?". A resposta o levou a viajar entre os shows do Rush com sua motocicleta BMW ao invés de um avião ou um ônibus ( criando pesadelos para a gerência da banda). e a embarcar em viagens extracurriculares pela África Ocidental, China e Europa. Ele visa preencher cada minuto da sua vida o quanto for possível, o que também pode explicar todas as suas tercinas.

Outro ponto de interrogação posou em sua face, mais um dilema moral que é "O que o eu de 16 anos faria?". Neil era um adolescente inteligente e desajustado de classe média, num subúrbio a 112 km de Toronto que alisava o cabelo, usava uma capa e botas roxas no ônibus da cidade, que rabiscou "Deus está morto" na parede de seu quarto e que entrava em confusão por batucar em sua mesa durante a aula. A ideia de punição de seu professor foi insistir para que ele batesse em sua mesa sem parar por uma hora de detenção, tempo que passou felizmente recriando as partes de Keith Moon em Tommy. Por anos, Peart usou em seu pescoço um pedaço de um dos pratos de Keith Moon, conseguido no palco após um show do Who em Toronto, e seu kit atual inclui um pad colorido com o antigo logo "bull-eye" da banda.

Nos primeiros anos, abrindo para praticamente todas as maiores bandas dos anos 70, Peart e seus companheiros - o baixista e vocalista Geddy Lee e o guitarrista Alex Lifeson - estavam perturbados como o que o baterista mais tarde descreveria como o "som dos vendedores". "Nós os ouvíamos dizer as mesmas ladainhas para o público todas as noites", diz Peart". "'Essa é a cidade mais rock'n'roll do mundo, cara!'. Isso era assustador, eu desprezo a desonestidade cínica". Eles conviveram com os caras do Kiss. "Nós ficávamos altos com Ace Frehley no seu quarto de hotel e o fazíamos rir", lembra Lee, "e eles realmente tiveram uma grande influência em nós, em termos de aprender a montar um show".

Eles foram deixados para trás, no entanto, pela visão ousada de Gene Simmons e Paul Stanley tendo o Kiss como um produto. "Eu não quero bater neles" diz Peart. "Mas uma vez eu estava em um pequeno restaurante no Kansas, e um cara com uma tatuagem Kiss Army não parava de tocar músicas do Kiss no jukebox. Ele acreditou numa campanha de marketing, e a engoliu como uma religião. Estava parecendo um convertido em Cientologia".

Pra finalizar, Peart quer que o esquisitão, o garoto puro que ele foi , esteja orgulhoso dele. "Tem tudo a ver com ser o seu próprio herói", diz ele. "Propus-me a nunca trair os valores que eu tinha aos meus 16 anos, de nunca me vender, de nunca me curvar ao homem. Um compromisso é o que eu nunca posso aceitar".


O Rush passou 41 anos dominando a arte do "não compromisso". Eles serviram seus super fãs enquanto ignoravam completamente o resto, e tudo isso funcionou muito bem. Há bandas estranhas e há bandas grandes, mas nenhuma delas é tão estranha e tão grande quanto o Rush. Em todas as datas da turnê atual, a banda corre pelo seu catálogo em ordem reversa, então praticamente toda a segunda parte do show é devotada aos trabalhos dos anos setenta, demonstrando-os em sua forma mais pura, mais estranha e, sem dúvida, mais impressionante.

Naquela época, eles tinham canções tão épicas que elas realmente continuavam de um álbum para o outro, incluindo, memoravelmente, "Cygnus X-1: Book One: The Voyage". Eles tinham Lee tocando seu baixo de forma feroz, enquanto gritava como se tivesse um pedal de overdrive em sua garganta, alcançando notas que faziam Robert Plant soar como Leonard Cohen. Eles tinham Peart emparelhando polirritmos com polissílabos e Lifeson convocando riffs "proto-trash", alguns violões clássicos, tocando acordes e o que mais pudesse fazer. Eles eram mais altos e agressivos do que seus imponentes antepassados progressivos, Yes e Genesis: o Rush às vezes soava como se tivesse formado totalmente seu estilo a partir de uma sessão mais pesada presente no final de "Watcher of the Skies" (do Genesis). "Éramos jovens", diz Peart, citando a si mesmo, inevitavelmente, "e tolos, corajosos e divertidos."

Com a chegada dos anos oitenta, o Rush descobriu a concisão e sintetizadores, gravando canções tensas que entraram direto para o cânone do rock clássico: The Spirit of Radio, Freewill, Tom Sawyer, Limelight. "Quando o punk e a New Wave chegaram", diz Peart, "éramos jovens o suficiente para gentilmente incorporá-los em nossa música, ao invés de sermos reacionários sobre isso - como outros músicos que eu ouvi dizendo, 'O que devemos fazer agora, esquecer como tocar?' Éramos fãs o suficiente para seguir, 'Oh, queremos isso também'. E com Moving Pictures [de 1981], acertamos em cheio, aprendendo a ser perfeitamente complexos e compactar um grande arranjo em uma declaração concisa".

Mesmo com os cabelos mais curtos e gravatas finas, o Rush continuou militante sobre a pureza de um power trio: Lee multitarefado, carregando os baixos e os vocais enquanto também usava cada membro de seu corpo para acionar sintetizadores e disparar alguns samples - um feito que trouxe virtuosismo para o número circense. "Em todos ensaios eu gritava, 'não consigo fazer isso!'", diz Lee. "Mas simplesmente parecia errado ter mais um cara no palco conosco. Conversamos sobre isso todo o tempo - ainda conversamos sobre isso! Mas há uma zona da qual não devemos ir, não pode ser feito". Eles têm suas próprias regras, e continuam com elas - Peart nem sequer toca a mesma levada mais de uma vez em uma música.

"Propus-me a nunca trair os valores que eu tinha
aos meus 16 anos", diz Peart. "Um compromisso é
o que eu nunca posso aceitar".

O Rush teve a mesma formação por quatro décadas, desde que Peart chegou para o lugar do baterista original, John Rutsey - um fã do Bad Company que sempre foi averso aos andamentos estranhos e a turnês americanas - logo após gravar seu primeiro álbum. Eles raramente tiveram discussões em todo esse tempo."Nós nunca queremos magoar um ao outro", diz Lee, "então se não concordamos em algo, fechamos a cara. É a meio que a maneira canadense. Mas adoramos bater no Alex quando ele diz algo estúpido".

"Se um de nós fosse o mínimo instável possível", diz Peart, "o mínimo disciplinado ou menos humorado ou diferente em qualquer forma, não teria funcionado. Então há um milagre aqui".

Ultimamente, o Rush têm se movido cada vez mais próximo do centro da cultura pop, com um documentário de sucesso, Rush: Beyond the Lighted Stage, e com a indução ao Rock and Roll Hall of Fame em 2013. Mas o fim está a vista - uma espécie de talvez. O Rush deixou seu gerente, Ray Danniels, incluir no anuncio oficial da turnê que essas datas seriam "muito provavelmente como a sua ultima turnê dessa magnitude" - uma versão bem canadense de despedida que os promotores queriam. "Parece muito como se fosse nossa ultima turnê", diz Lee. "Eu não posso dizer com certeza. Mas isso não significa que não queremos mais trabalhar juntos, não significa que não faremos mais nenhuma projeto criativo, e tenho ideias para shows que poderemos fazer sem ter uma turnê envolvida".

"Não acho que estamos tendo tanta dificuldade para pensar sobre isso como possivelmente a última", acrescenta Lifeson, 61 anos, que possuí alguns problemas de saúde e quer passar o tempo com seus netos.

Peart não gosta de turnês desde seu primeiro mês na estrada, em 1974, tentado a se tornar apenas um músico de estúdio no começo de 1989. Mas as preocupações do baterista se tornaram mais sérias. Por um lado, ele está aflito pela longa separação de sua filha de cinco anos, Olivia. Eles estão próximos o suficiente para ele saber o nome de cada personagem do desenho favorito dela, Bubble Guppies."Percebi na ultima turnê que é muito bom para ela quando estou lá, e é muito ruim quando não estou", diz Peart, que mudou de sua terra natal, Canadá, para Los Angeles na virada do século. Peart e sua esposa há 15 anos, Carrie Nuttall, não planejam contar a Olivia sobre a turnê até uma semana antes de começar. Peart se preocupa com sua reação.

Peart, Lee e Lifeson no backstage em Springfield, Massachusetts, em dezembro de 1976. Foto por Fin Costello / Redferns / Getty

Conforme Peart adentra em seus sessenta, ele também questiona sua contínua capacidade física de tocar nos shows do Rush, uma tarefa que ele compara como "correr uma maratona enquanto resolve equações matemáticas". Mas muito além disso, ele se surpreende. "Tudo dói, mas tudo bem", diz ele. "Sou apenas grato por ainda poder fazer isso - e não apenas no nível que eu desejaria, mas por ainda ficar cada vez melhor".

No começo dessa manhã, os três integrantes do Rush chegaram ao Mates Studios, em formato de U, com uma estrutura parecida com um galpão pouco glamouroso que têm sido o local de ensaio da banda desde o fim dos anos oitenta. Em uma sala com paredes de tijolo, um valioso estande da Guitar Center com equipamos os aguardam, junto de um tapete preto enorme com o logo da turnê R40. Lee está usando 26 baixos vintages durante a turnê: "a história do desfile de baixos". Peart está tocando dois kits de bateria diferentes, e nos ensaios eles estão um próximo ao outro. Um deles é seu atual setup banhado a ouro, com logos de cada álbum do Rush desenhados a laser; o outro, para as canções antigas, é um recriação precisa de seu kit cromado de 1978, completo com o rapaz nu do encarte de 2112 estampado no bumbo.

Peart, que está usando a sua costumeira touca de palco, um modelo arredondado estilo africano, acha o equipamento antigo desafiador. Ele é um baterista mais fluído e relaxado agora, mas que tocava de punho cerrados, de presença carrancuda atrás dos pratos nos velhos tempos. "Esse é todo pensado, tudo é confortável", diz ele, apontando para o seu novo kit. "Posso tocar sem olhar. O kit antigo, tudo nele é estúpido - como eu era naquela época. 'Condução aqui em cima ? Isso faz sentido!?'".

Lee mostra seu pedal de baixo, o qual é definitivamente algo como um sintetizador de pé, disposto como teclas de piano. "Ás vezes é um teclado", diz ele. "Ás vezes soa como um máquina de efeitos sonoros. Como eu não tenho muito a fazer, dance, garoto, dance!".

O show de abertura em Tulsa, Oklahoma, está a apenas três semanas daqui. "Nós ainda não estamos muito bons", diz Alex. "Mas estamos praticando!".

"Estamos praticando nossos erros", acrescenta Lee. Eles costumavam provocar Peart sobre sua insistência em ensaiar um mês antes dos ensaios em grupo começarem, dizendo a ele que é o único homem na face da terra que "ensaia para ensaiar" - agora os três fazem o mesmo. Lifeson, que vive em Toronto próximo a Lee, tem o método mais simples: Ele escuta as músicas do Rush em seu home studio e toca junto.

Hoje, o Rush está passando pelo primeiro set, o qual começa com músicas do seu álbum mais recente, Clockwork Angels. É um LP conceitual aventuroso, fechando um ciclo com o retorno aos motivos sci-fi que Peart abandonara há tanto tempo. Seu produtor, Nick Raskulinecz, cresceu sobre a banda, e os empurrou para revisitarem seus aspectos mais "Rushísticos", fazendo com que Lee usasse seu registro vocal agudo e encorajando Peart a fazer um solo de bateria no meio da sinuosa canção "Headlong Flight".

Tocando essa canção agora, Peart toca sua caixa com tanta força que a pele de sua mandíbula treme. Lee, em calças jeans escuras e uma camiseta desbotada, toca linhas de baixos serpentinas num Fender verde, sem nenhum esforço aparente; Lifeson está mais solto, com calças claras e camiseta cinza, em seu próprio mundo à direita, arrebentando em um acorde bem complicado. No final, Peart está vermelho e se enxuga com uma toalha.

A banda tem um momento difícil agora com a pesada instrumental "The Main Monkey Business", estragando o final, "Foi perto", diz Lee.

"Dois de nós três estavam certos", diz Peart. ("Você não pode ter isso dentro de uma banda de três peças", ele observa mais tarde).

"Eu fui certo em tudo, e depois me atrapalhei", lamenta Lifeson."Tem uma porra de uma nota estúpida aqui".

Eles almoçam numa sala de descanso, onde Lifeson, que está tentando uma dieta de baixo carboidrato ("Eu sempre fui parcial em relação a proteínas - exceto quando como carboidratos"), opta por um bife. "Você irá dormir durante o resto do set", diz Peart, que pega um prato mais leve, mas depois engole uma tigela de sorvete: tocar bateria queima muitas calorias.

Na parede amarelada há retratos impressionantes de Jeff Beck, Alice Cooper, Prince os antigos companheiros de turnê, Kiss, junto de uma reprodução da arte de John Entwistle na capa do álbum The Who By Numbers. Com o fim da refeição, um dos roadies os entrega fio dental e pequenos palitos de goma, os quais Lee e Lifeson pegam e usam de forma imediata - os caras nessas fotos talvez sejam um pouco mais tradicionais na mística do rock'n'roll, mas se tratando de higiene bucal, o Rush ganha.

"Muitas bandas tinham medo do Rush", diz o
diretor de iluminação, Howard Ungerleider. "Elas estavam sendo
superadas, e odiavam isso".

Após o almoço, o setlist continua a voltar no tempo, chegando em uma das melhores canções do Rush, "Subdivisions", de 1982. O lamento de um adolescente preso nos subúrbios foi um avanço lírico para Peart, trocando fantasia e filosofia por emoções sem adornos. "Os sonhadores estão em lugar algum, ou os excluídos tão solitários", entona Geddy Lee, sobre uma sinistra marcha de sintetizadores e notas que lutam entre si, refletindo a luta do narrador. "Conforme-se ou fique de fora!".

Há um tempo atrás, eu era um jovem fã do Rush nos subúrbios, com camisa da turnê do Roll the Bones e tudo mais. É uma experiência muito intensa, depois de todos esses anos, ter a banda a cinco passos na minha frente, tocando essa canção em particular diretamente aos meus ouvidos. "Quando crescemos tudo parece tão unilateral", canta Lee, apoiado em seu teclado e com seu baixo pendurado em sua cintura. "Opniões avaliadas / O futuro pré decidido". Da forma mais discreta possível, seco meus olhos - Grohl, me entenderia.

"No inicio muito daquelas coisas fantasiosas eram apenas diversão", observa Peart depois. "Porque eu não acreditava que poderia colocar algo real em uma canção. 'Subdivisions' acabou se tornando um hino para muitas pessoas que cresceram sob essas circunstâncias e, desde então, percebi que o que eu mais quis colocar numa canção era a experiência humana".

"Nessa próxima canção temos a participação da Minnie Mouse", informa Geddy a uma arena vazia em Tulsa, Oklahoma, adotando um falsete estridente. Este é um ensaio completo após duas semanas, e o Rush acabou de começar a suíte de 1977, "Xanadu", com Lee e Lifeson usando doublenecks (Lifeson nomeu um deles de "Pesado" e o outro de "Bastardo"), e Lee tenta alcançar notas altas que parecem ser tão fáceis e excelentes como quando ele tinha 23 anos. "Você tem que superar a si mesmo e apenas dizer, 'Bem, Ok, eu vou me transportar a aquele período'", diz Lee. "Realmente não sei o que eu estava fazendo naquela época, apenas gritava. Levou aproximadamente 10 anos para que eu aprendesse que há alguns tons muito melhores para cantar".

Rush tocando em Dallas. Foto por Randy Johnson

Em toda a sua auto-depreciação, Lee tem uma presença inesperadamente formidável - elegante, aparência jovial, desencanado de si mesmo e com uma pitada de aço por trás de sua habilidade. "Ele pode ser intimidante pois é muito esperto, um homem do mundo", diz Raskulinecz, produtor nos últimos dois álbuns do Rush. "Em minha experiência, Geddy é o líder da banda". Com seus cabelos na altura dos ombros, um nariz distintivo e óculos do John Lennon, ele com certeza é o membro mais reconhecível - mesmo com um boné colocado bem apertado, os fãs o interromperam por vinte boas vezes enquanto tentava assistir a liga de baseball em Tulsa. ("Minhas feições são meio profundas em uma forma cartunesca", diz Lee, "e eu não mudei muito fisicamente. Considerando que, conforme Alex envelheceu, ficou com uma cabeça mais quadrada. Ele parece mais com uma pessoa normal. Eu não pareço com uma pessoa normal").

Lee não tem problema em se manter ocupado com o Rush - ele e sua esposa, Nancy Young, têm casas em Londres e Toronto, e passam a maior parte do tempo viajando. Ele coleciona muitas coisas de forma séria, incluindo arte, vinhos e artigos relacionados ao beisebol. Mas ele está menos ansioso para se aposentar da estrada do que seus companheiros de banda. "Eu definitivamente sou o mais entusiasmado para trabalhar", diz ele. "Comigo, mixar é um pesadelo - os caras têm que rasgar a porra das minhas mãos por que eu continuo tentando deixar tudo perfeito. Eu amo tocar vários shows, amo tocar para as pessoas e não tenho dúvidas nisso. Os outros caras têm dúvidas, e eles têm outras demandas em suas vidas que eu não tenho".

"Olho para o Geddy e vejo um homem que é 10 anos mais novo do que indica a sua certidão de nascimento", diz Ray Danniels. "E os outros dois aparentam ter a idade que suas certidões indicam".

Lee relembra algumas situações de desprezo contra sua banda, embora sua pontuação seja gentil. Os caras do Aerosmith eram notavelmente poucos generosos com o Rush na época que a banda abria para eles, os negando passagens de som e cortando o volume. "Muitas bandas tinham medo do Rush", diz o diretor de iluminação de longa data, Howard Ungerleider. "Elas estavam sendo superadas, e odiavam isso". Durante os problemas do Aerosmith no começo dos anos 80, o Joe Perry Project abriu para um Rush ascendente, e como Ungerleider recorda, Lee pediu à equipe que tratassem Perry generosamente, que deixassem ele passar o som o quanto quisesse. E, conforme a história continua, Lee então parou no camarim de Joe para perguntar se ele estava sendo bem tratado. Quando Perry respondeu que sim, Lee retrucou, "Ótimo, porque eu nunca desejaria que alguém se sentisse da mesma forma que nos sentimos quando abrimos pra vocês". (Lee não se lembra da resposta com clareza, mas diz que Perry se desculpou).

(Após essa história ir para impressão, Joe Perry nos enviou uma resposta: "Francamente, não me lembro de ter tocado com o Rush... A competição entre as bandas eram duras, a competição entre as equipes eram mais duras ainda, então eu não duvido das palavras do Geddy. Me lembro de que quando abríamos para bandas inglesas, sempre tínhamos o tempo cortado, então eu pedia que nossa equipe tomasse conta das bandas de abertura. Eu queria agradecê-los por terem tratado "Project" tão bem e na verdade terem tempo de ir perguntar se estava tudo OK. Espero ter tido tempo de voltar e me desculpar. Quero parabenizar o Rush pela sua longevidade, porque assim como nós eles ainda estão por aí para contar as histórias").

Foi Lee quem levou o Rush à transformação radical nos anos 80, após a sobrecarga progressiva no álbum Hemispheres, de 78. Além de outros problemas, eles escreveram e gravaram a música do álbum inteiro sem sequer checar se Geddy poderia cantar sobre ela. "Nós o compomos num tom fodido",  diz ele, e sua frustração continua fresca após 37 anos. "Aquelas foram as piores duas semanas da minha vida gravando vocais".

Após aquele álbum - que começava com uma música de 18 minutos, a segunda parte de "Cygnus", com Lee cantando coisas como: "Como um espírito desencarnado / Estou morto e ainda por nascer" - o frontman disse aos seus companheiros que o Rush precisava recomeçar. "Eu disse, 'Observe, a forma como estamos nos tornando estereotipados, assim como todas essas bandas que não podemos aguentar'", diz ele. "Fazemos a abertura, e depois fazemos esse tema e depois aquele. Então dissemos, 'E se pegarmos seis minutos tentando fazer algo que é mais agradável, contudo, que ainda continue poderoso, com momentos musicais realmente complicados e que tenham uma energia diferente?'. Foi ai que começamos Spirit of Radio e esse tipo de canções".

Lee em 1977. Foto por Fin Costello / Redferns / Getty
Lee é amigo de Lifeson desde que eram nerds adolescentes nos anos sessenta; o guitarrista apresentou (Nancy) Young a Geddy, e eles se casaram em 76. Claramente, Lee não tem problemas com seu compromisso, embora viajar tensionou seu relacionamento com sua família até o Rush cortar as datas Européias nos anos oitenta. "A pior coisa que você pode fazer em um casamento é tratar seu parceiro como sua esposa ou seu marido", diz Lee. "Decidimos nos tratar como se ainda fossemos namorados. Esse tipo sutil de semântica ajuda muito, eu acho".

Lee, nascido como Gary Lee Weinrib, é filho de sobreviventes do holocausto, e ele dedica sua jornada ao legado de seus pais. Eles se conheceram num campo de concentração polonês em 1941, e se apaixonaram na epóca em que ambos ficaram aprisionados em Auschwitz. "Eles tinham 13 anos de idade", diz Lee, durante uma noite de bebedeira num bar sonolento em Tulsa. "Então era uma merda pré-adolescente surreal. Ele subornava guardas para trazer sapatos para minha mãe". Conforme a guerra seguia, sua mãe foi transferida para Bergen-Belsen, e seu pai para Dachau.

Quando os Aliados liberaram os campos, seu pai saiu em busca de sua mãe. Ele a encontrou em Bergen-Belsen, que havia se tornado um campo de pessoas deslocadas. Eles se casaram lá, e imigraram para o Canadá. Mas anos de trabalhos forçados machucaram o coração de seu pai, e ele morreu aos 45 anos, quando Lee tinha 12. Sua mãe teve que trabalhar, deixando seus três filhos sob o cuidado de sua já sobrecarregada avó. "Se meu pai tivesse sobrevivido", diz Lee, "talvez eu não estaria sentado aqui conversando com você. Ele era um cara rígido, e se não quisesse que fizesse algo, talvez não teria feito. Foi um golpe terrível perdê-lo, mas o curso da minha vida mudou porque minha mãe não podia nos controlar".

"No inicio muito daquelas coisas fantasiosas
eram apenas diversão", diz Peart. "Porque eu não acreditava
que poderia colocar algo real em uma canção".

Lee imediatamente transformou seu porão em um local de ensaio, mesmo que a cozinha de sua avó estivesse lá também. "Minha avó odiava isso", relembra o irmão mais novo de Lee, Allan Weinrib, produtor de vídeo e documentarista que também está encarregado de elaborar os vídeos das turnês do Rush. "Aquela definitivamente não era uma situação muito boa. Uma vez, estava tudo literalmente tão alto que sacudiam os copos em cima das prateleiras, tanto que caíram dentro de sua sopa de frango".

A mãe de Lee foi devastada quando o seu filho anunciou que ele estava abandonando o colegial para tocar rock'n'roll. De alguma forma, ele ainda está fazendo as pazes com ela. "Todas as merdas que eu fiz ela passar", diz Lee, "em cima do fato que ela tinha acabado de perder seu marido. Eu sentia como se tivesse certeza de que isso valeria a pena. Como, por que eu fiz tudo isso à ela? Eu queria mostrar que eu era um profissional, que estava trabalhando duro e que eu não era apenas um porra louca".

A memória que tem de seu pai é uma força motriz. "Meu pai perdeu toda a diversão", diz ele, "todo esse trabalho e tudo pelo o que lutei. Ele foi embora cedo. Acho que é por isso que quero continuar tocando, e é também por isso que eu viajo tanto. Enquanto tiver minhas faculdades, quero curtir tudo o que houver, ver o máximo que puder, apenas fazer o melhor da vida".

Rush do lado de fora do seu trailer. Foto por Fin Costello / Redferns / Getty

De volta à Los Angeles, Neil pára em um semáforo e nota uma mulher com olhos tristes, mendigando no outro lado da rua. Ele tem o hábito de dar esmola aos sem-teto. ("As pessoas perguntam, 'Porque eles não arranjam um emprego?'. Eles não conseguem arrumar um emprego"), então ele me pede para entregar 20 dólares à mulher. "Eu te pago na volta", diz ele.

"Muito obrigado!" diz ela. "Agora, que tipo de carro é esse?".

Peart chega a um pequeno edíficio a uns dois quilometros de sua casa, que funciona como um escritório e como uma garagem para a sua coleção de carros antigos. Além do Aston Martin, ele tem um Jaguar E-type, um Corvette, um Maserati conversível e uma Lamborghini Miura, todos da década de 60 e todos pratas, com exceção do Lambo, amarelo banana. "Eu os chamo todos de Surfistas Prateados" diz ele. "Porque tudo o que eles fazem é descer e subir a costa".

Ele nos serve com uma dose de Macallan 12 anos. (Quando o baterista de jazz Peter Erskine, que deu algumas aulas ao Peart nos ultimos anos, pergunta se ele aplica gelo em seus músculos após os shows do Rush, Peart retrucou, "Sim, eu aplico gelo no meu whisky"). Nos acomodamos num sofá próximo à sua mesa de metal, onde se lê numa placa "é o que é". A mesa de café está repleta de cópias do livro recente Far and Near, uma adaptação em quadrinhos de Clockwork Angels e um livreto comemorando as aventuras de sua equipe de corrida, Bangers N' Mash. As paredes estão cobertas com pôsteres de carros e fotos que Peart tirou em suas viagens.

Nos anos setenta, Peart irritava a imprensa com sua afinidade com a heroína libertária Ayn Rand - ele citou sua "genialidade" no encarte, e os críticos prontamente rotularam o Rush como fascistas. A mini opera rock de 1976 2112 - o avanço do Rush é, em parte, um esboço do romance Anthem, de Ayn Rand. Não há nada descontroladamente controverso sobre a mensagem pró-individualidade em 2112: é difícil imaginar alguém do lado dos vilões que querem ditar "as palavras que lê / as canções que cantam / as imagens que dão prazer aos nossos olhos". Mas, uma música mais antiga do Rush que leva a visão de Rand foi "Anthem", que é mais problemática, protestando contra o tipo de generosidade que Peart agora, pratica de forma rotineira : "Mãos pedintes e corações sangrando irão / apenas pedir por mais". E "The Trees", uma balada alegórica poderosa sobre os bordos condenando uma floresta, clamando por direitos iguais aos carvalhos imponentes, que foi estridente o suficiente para convencer um jovem Rand Paul que finalmente havia encontrado uma banda de rock de direita.

Neil Peart em 1980. Foto por Fin Costello / Redferns / Getty

Peart superou a sua fase Ayn Rand há muitos anos, e agora descreve a si mesmo como um "libertário de coração mole", citando suas viagens à Africa como transformadoras. Ele afirma estar na mensagem de "The Trees" mas, além disso, o seu coração mole parece dominante. Peart se tornou cidadão americano, e é improvável que vote em Rand Paul ou em qualquer outro republicano. Ele diz que é "muito óbvio" que Paul "odeie mulheres e negros" - E o Rush enviou uma intimação para que Paul pare de citar "The Trees" em seus discursos.

"Para uma pessoa com minha sensibilidade, você só está à esquerda com o partido democrático", diz Peart, que também chama George W. Bush de "um instrumento do mal". "Se você é uma pessoa compassiva em tudo, a coisa toda da saúde - negando misericórdia às pessoas que sofrem? O quê? Isso é Cristão?".

Peart não é cristão, duvida da existência de Deus desde que era criancinha. "Eu cantava os hinos e lia as histórias da bíblia, mas sempre ficava perplexo, tipo, 'Sério? Jesus quer você como um raio de sol? Pra quê?'". Em suas canções explicitamente ateístas como "Freewill", ele brincou com quem "escolhe um guia pronto em alguma voz celestial", e em "Roll The Bones", de 1991, postulando acidamente sobre um cosmos aleatório, onde as crianças sem sorte são "nascidas apenas para sofrer". "Nós viemos ao mundo e aproveitamos nossas chances / O destino é apenas o peso das circunstancias... Por quê estamos aqui? Porque estamos aqui / Role os dados".

Nas últimas décadas, Peart abrandou seu racionalismo, especialmente ao encarar duas tragédias. No dia 10 de Agosto de 1997, sua primeira filha, Selena, de 19 anos, morreu em um acidente de carro em uma viagem para a sua universidade em Toronto. Depois de apenas 5 meses, a mãe de Selena - sua esposa, Jackie - foi diagnosticada com um câncer terminal, sucumbindo rapidamente. "Jackie recebeu as notícias quase como agradecida". Peart escreveu suas angustiantes memórias dessa época, Ghost Rider. Peart disse aos seus companheiros de banda para considerá-lo aposentado, e embarcou numa viagem solitária de motocicleta cruzando os Estados Unidos, procurando um sentido e consolo.

Peart casou-se novamente em 2000 e se uniu novamente ao Rush em 2001. "Roll The Bones" veio à sua mente diversas vezes em seus anos de escuridão. "Deus, essa musica", diz ele, num restaurante de churrasco brasileiro próximo à sua casa - ele nos levou lá em outro, mais novo, Aston Martin. "O que ela veio representar. Digo, ' Por que isso acontece?' Quando algo realmente ruim acontece, com certeza você procura o por quê. Eu fui completamente sobrenatural: 'Alguém colocou alguma maldição em mim, devo ter feito algo realmente horrível. Deus deve estar louco comigo'. Eu tive que vasculhar toda essa merda novamente procurando por um sentido".

Mas ele ainda prefere a explicação "porque acontece", do que aquela onde os horrores do destino fazem parte de um plano divino. "Faça a você mesmo um favor", diz ele, "nunca diga a mim que, 'Tudo acontece por algum razão'. Porque você estará morto".

Peart de repente se lembra que teria que me pagar aqueles 20 dólares de cedo. Eu acenei negativamente a ele, dizendo que prefiro manter o karma. "Sim, ha ha, certo, karma", diz ele. "Novamente, isso é algo que eu costumava acreditar. Todo Natal tinha algumas páginas com as contribuições de caridades, e eu mostrava para minha filha para quem estávamos doando e porque, como um karma". Ele me olhou nos olhos. "Até eu perceber que isso não funciona".

"Encontrar a generosidade novamente foi um enorme presente", acrescenta ele. "Porque eu tive tempos do tipo 'Eu odeio todo mundo. Por que você ainda está vivo? Você deve morrer'. E depois disse, 'Se eu vou viver, não quero ser esse cara'".

Perto da meia noite, com a turnê do Rush começando daqui a 24 horas, Alex Lifeson está ajoelhado sobre um travesseiro em frente a uma janela aberta de seu quarto de hotel, exalando fumaças pungentes de erva no ar úmido de Tulsa. (Se você está no Rush e quer ficar chapado, você fica consideravelmente). Ele para em um acesso de tosses violento. "Bem, essa é a merda dos baseados de hoje em dia", diz ele, passando o baseado. "É muito expansivo em seus pulmões". As ruas abaixo de nós estão vazias numa forma pós-apocalíptica. "A cidade está agitada hoje a noite", diz Lifeson.

Mais cedo nessa noite, embriagado durante um jantar extremamente agradável, perguntei a Lifeson se a erva o ajudou a escrever a música do Rush. "Talvez 80% do tempo", diz ele, rugindo. "Descobri que fumar maconha pode ser um grande agente criativo". (Lee abandonou os baseados no começo dos anos 80; Peart diz: "Eu gosto de maconha, mas não serei seu garoto propaganda"). "Quando você está no estúdio e tocando, fica desleixado", continua Lifeson. "E cocaína é pior, pára tudo. Se você quer sentir seu coração batendo em seu colchão as 7 da manhã quando os pássaros estão cantando, a maconha é perfeita. É incrível. O que as crianças fazem com as drogas agora?".

Lifeson era fã do Ecstasy no começo dos anos noventa, e não sabia que agora ele é chamado de Molly. "Fico feliz que tenha me contado", ele brinca. "Minha esposa é uma pessoa totalmente anti drogas, mas por alguma razão eu apresentei isso a ela. Nós aumentamos o volume e estávamos dançando, e depois conversamos por horas sobre coisas pessoais profundas que pareciam ser a primeira vez, mesmo estando casados por anos. Estávamos passando por uma fase difícil em nosso relacionamento, e aquilo abriu muitas portas".

Assim como Lee, Lifeson é filho de imigrantes, em seu caso da Iugoslávia. Aos 16, ele engravidou sua namorada, Charlene, de seu primeiro filho - o que acrescentou uma certa urgência para ter sucesso com a primeira encarnação do Rush. O casal se casou cinco anos depois, e ainda estão juntos. "Era certamente uma preocupação", diz ele. "Mas eu sempre tive um escape como encanador". Ele imita o sotaque eslavo de seu pai: "'Você pode fazer uma boa grana concertando encanamento!'. Eu costumava fazer uns serviços com ele. Ele me pegava a 1:30 da manhã depois de um show num bar, e então íamos trabalhando noite a fora até as 8:00. Depois, ele me levava para casa e ia trabalhar".

Alex Lifeson em 1977. Foto por Fin Costello / Redferns /Getty

De acordo com a sua personalidade - talvez melhor demonstrada em seu discurso no Hall of Fame, que consistiu literalmente apenas das palavras "blá blá blá" - Lifeson é um animal musical mais instintivo e selvagem do que seu companheiros de banda. "Ele não é nada além de espontâneo", diz Lee. "É um dos guitarristas mais subestimados - por anos, nunca apareceu em nenhuma votação de melhor guitarrista, Acho que é porque muito de seu brilho é tão sutil, assim como seus acordes inventados, e suas escolhas de notas incomuns".

Lifeson enfrentou algumas crises de saúde sérias. Ele recebe injeções para a artrite psoriática, sendo hospitalizado com anemia devido a úlceras hemorrágicas há alguns anos, tendo que receber transfusões de sangue. Por anos, também, teve uma considerável dificuldade para respirar, sentindo como se ele nunca conseguisse preencher seus pulmões. Recentemente, ao passar por uma cirurgia de úlcera, seu médico descobriu o problema. "Meu estomago estava atrás do meu coração, empurrando meu pulmão", diz ele. Tudo está no lugar agora, empolgado por fazer shows sem falta de ar.

No quarto de hotel, Lifeson pega o seu violão PSR - o seu modelo signature - e toca por um longo tempo, de olhos fechados, desenrolando uma série de repiques, acordes pastorais, riffs zeppelianos. Nada disso parece com o catalogo do Rush, "Isso é o que eu faço", diz ele. Ele fez o mesmo na noite passada, ao retornar ao seu quarto após um ensaio de três horas do Rush para fazer mais musica. "Eu sento e toco guitarra aqui, bêbado e chapado, por uma hora. É legal, mas é meio louco. Sou sortudo, juro por Deus. Posso sentar aqui e tocar por horas para o meu próprio prazer. Não tem nada a ver com o Rush. É apenas um exercício puro de alegria".

Na noite seguinte, o Rush finalmente começa a sua turnê, e todo o ensaio meticuloso é imediatamente contrariado pelo entusiasmo dos fãs: a multidão está enlouquecidamente tão alta que os caras da banda não conseguem ouvir eles mesmos nos monitores. "Todas as nossas preocupações tornaram-se obsoletas", diz Lee, alegre o suficiente, após o show entre goles de champanhe numa sala atrás do palco revestida por uma cortina preta. Conforme o habitual, Peart se mandou em sua motocicleta assim que acabaram, mas os outros caras ficaram pra trás celebrando com sua equipe.

"Meses de preparação significando nada!", adiciona Lifeson, encolhendo os ombros.

Mas eles apreciaram o fervor. "Havia um cara na segunda fila durante Xanadu", diz Lee. "Eu achei que sua cabeça fosse explodir pra fora e sair rolando. Ele não conseguia se conter nem fodendo! Eu achei que ele fosse ter um ataque do coração".

Durante o show, Lee apresentou a canção Jacob's Ladder, de Permanent Waves, como "uma canção que nunca tocamos ao vivo". "Geddy nunca está errado", diz seu irmão - mas nesse caso ele estava, de forma flagrante até: não apenas o Rush já tocou essa canção, conforme os fãs apontaram de forma insistente online, como está presente em um álbum ao vivo, Exit...Stage Left, de 1981. Lee ainda não consegue acreditar que deu essa gafe; deitado num sofá ele começa a olhar pelo material do Rush em seu celular. "Me fodi", diz ele, finalmente. "Não tenho memória alguma de ter tocado Jacob's Ladder".

Lifeson imita a voz de um fã ofendido: "Eu odeio esses caras! Eles são mentirosos!".

Eu sugeri que Lee continuasse a dizer ao público que eles nunca tocaram essa canção, só pra deixar os fãs loucos. Ele aquece a ideia. "Eu poderia dizer, 'As pessoas estão insistindo que já tocamos essa canção antes - eles estão cheio de merda!".

Lifeson imita a voz do Cartman como Geddy Lee: "Eu sou o Geddy Lee, e se eu disse que nunca a tocamos antes, nós nunca tocamos antes!".

Eles ainda apreciam uns aos outros, são velhos amigos e, de repente, parece impensável que esse seja o fim. Neil parecia quase vertiginoso no palco, jogando várias baquetas extras ao ar, soltando um largo sorriso durante Xanadu. Aconteceu que sua filha reagiu melhor do que ele imaginou com as noticias da turnê, "Acho que Neil está se sentindo mais otimista", diz Lee, "porque tudo parece mais fácil do que o esperado...".

Por sua parte, Lee não poderia chegar e acabar o show com um adeus real. "Obrigado pelos incríveis 40 anos, nós apreciamos muito isso", após a banda completar a jornada regressiva com o seu primeiro hit Working Man. Pouco antes de deixar o palco iluminado, Lee encarou em frente de seus óculos, as 19 mil faces expectantes e ofereceu um pouco de consolo: "Esperamos ver vocês novamente algum dia".