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Reflexos Numa Imensidão de Espelhos
Por Neil Peart

Em 1994 o Rush está comemorando 20 anos (nosso aniversário de strass, acredito que seja chamado assim). Você consegue imaginar três caras juntos por todos esses anos, e ainda encontrando um público que continua curtindo os três? Não sei o que é que acho mais inacreditável. Mas deve ser algum tipo de recorde, e de qualquer forma, estamos felizes. Deve ser esse o segredo, se é que há algum.

"Imensidão de Espelhos" é uma expressão criada pelo poeta T.S. Elliot em "Gerontion". Foi também utilizada pelo ex-chefe de contra-inteligência da CIA, James Jesus Angleton, para descrever o mundo da espionagem. Essa é a origem da faixa "Double Agent", que reflete o funcionamento clandestino dos sonhos e do subconsciente. Desinformação ou inteligência? Que os espelhos decidam.

Reflexos numa imensidão de espelhos: um tipo de tema. Não reflexos no sentido convencional de olhar para trás - certamente que se pode refletir sobre o presente e o futuro. Mas no sentido de se olhar no espelho e descobrir seu ego escondido. De olhar a natureza humana e sua obra neste mundo, de olhar as tragédias e também os momentos inspiradores da vida cotidiana. Papo-cabeça, eu sei, mas isso não quer dizer que não dá pra se divertir com ele! Esse é o segredo, se é que há algum.

Antes de começar a trabalhar nesse disco, demarcamos nossos objetivos. Esse processo correu da maneira mais casual possível: durante a tour, nos bares dos hotéis, durante as passagens de som. De maneira geral, continuamos procurando um equilíbrio entre a espontaneidade e o refinamento (que são complementos naturais, e não adversários, como alguns pensam). Desta vez, tentaríamos também trabalhar uma abordagem mais orgânica nas canções, com baixo, bateria e guitarra. Nossas verdadeiras contrapartes.

Descontadas essas noções bem vagas, começamos com apenas uma "folha de papel em branco" - a mentalidade que costumamos trazer a cada novo projeto. Dessa forma, começamos a revistar o mundo atrás de produtores e engenheiros que pudessem nos ajudar a moldar qualquer canção que surgisse quando começamos a compor. Checamos o campo dos jovens talentos, pessoas que estivessem fazendo um trabalho interessante, mas logo ficou evidente que não tínhamos nada para aprender com alguém que fez menos discos que nós. Precisávamos de entusiasmo, mas com experiência!

Aí entra - ou entra de novo - Peter Collins, uma cavalheiro inglês pequenino, barbudo e fanático por charutos, que trabalhou conosco como coprodutor em Power Windows e Hold Your Fire. Mais uma vez, Peter foi "o ouvido objetivo" ideal para nós, uma outra contraparte. Dedicado à música acima de tudo, ele pesa uma performance ou uma única parte em relação ao sentimento que transmite e sua contribuição para toda construção (como um arquiteto, ele tem "uma obsessão por construções"). Ele se mantém distante da parte técnica e tecnológica, do artesanato, do "controle de qualidade" como ele mesmo diz - e com razão, pois considera que essas coisas devem ficar a cargo dos músicos e engenheiros. Todos os outros podem se amontoar em torno de uma mesa de mixagem para manipular detalhes da musicalidade e do som, enquanto seu trabalho é o de manter o projeto em andamento, não permitindo que nem a técnica e nem a tecnologia interfiram na arte - na canção em si. Esse é o seu segredo, se é que ele tem algum.

Acabamos descobrindo novos engenheiros, e Kevin "Caveman" Shirley foi nossa escolha para a gravação definitiva. Seu trabalho anterior parecia capturar os crus de forma direta, poderosa, emocionante e mais fiel possível ao que baterias e guitarras realmente soam. Nosso homem das cavernas era um tanto quanto purista, utilizando poucos efeitos e o mínimo de processamento. Por exemplo, se eu pedisse que alterasse o som do meu chimbau, digamos dando mais brilho e mais corpo, ao invés de simplesmente deslizar um botão na mesa ele levantaria e mudaria a posição do microfone. Como uma contraparte para Caveman, trouxemos Michael Letho para a mixagem final. O trabalho anterior de Michael apresentava um estilo de camadas refinado e arquitetônico na construção de uma música (outro com "obsessão por construções"), e achamos que ele complementaria o estilo de Caveman e inclusive o nosso, combinando crueza e polimento, onde ganharíamos ambos sem sacrificar nenhum dois dois, podendo-se assim dizer. Como Peter Collins comentou no final: "Não é bom quando um plano realmente funciona?"

***

O dicionário Oxford define "counterpart" como "duplicado" e "oposto", no sentido de "formar um complemento natural ao outro". Isso é o que considero o mais interessante sobre essa palavra: tomando dessa forma, "contrários" são reflexos dos outros, opostos, e não necessariamente contraditórios, inimigos. Não se deve resistir às polaridades, e sim conciliá-las. Buscar a terra alienígena.

Dualidades como gênero ou raça não são opostas, e sim verdadeiras contrapartes. São a mesma coisa, e no entanto diferentes - o que não deve causar nenhuma competição existencial, como se pudéssemos fazer tudo sem elas. Melhor ainda: como se pudéssemos viver sem elas.

Tendo esses conceitos em vista, o ouvinte não deve confundir a ironia de "Stick It Out", com seu apelo tanto para a coragem quanto para a paciência. Ou "Animate", que não é sobre dois indivíduos, e sim sobre um homem conversando com seu anima - seu lado feminino, na definição de Carl Jung. Nessa dualidade, o que "um homem deve aprender gentilmente a dominar" é ele mesmo, seu próprio "traço submisso", enquanto aprende também a dominar gentilmente o animus - a coisa masculina - o outro hormônio impulsionado por palavras como agressividade e ambição. Dominaremos de uma única maneira: não nos submetendo ao instinto bruto, à cólera violenta ou à ambição inescrupulosa.

Porém podemos nos submeter ou dominar conforme a ocasião permite ou exige, tentando reconciliar nossos duplos e nossos contrários e sonhando em correr através da vida na velocidade do amor (186 mil milhas por segundo, se você acredita em amor à primeira vista). Todo mundo deseja o ideal de "ser o complemento natural a um outro". Ser uma contraparte. Amizade, amor, parceria na vida e no trabalho são as recompensas de construir essa ponte entre o oposto e o contrário.

Counterparts. Palavras e música. Guitarra, baixo e bateria. Escrever, ensaiar e gravar. Voar e dirigir, trabalhar e rir. Alex, com seus lampejos de espontaneidade, seu humor bizarro, seu fogo. Geddy com seu instinto melódico, sua ironia seca e sua paixão meticulosa. Eu e minha compulsão obsessiva e meu bombardeio rítmico. Essa é a verdadeira sinergia, o todo maior das partes que são - afinal - nossas velhas conhecidas.

O caminho da verdadeira sinergia nem sempre é suave. Como em toda relação no mundo real, existe fricção às vezes. Mas, se tratada com respeito e dignidade, pode se tornar um amolador que cria suas próprias faíscas. Afinal, nenhuma pérola cresce sem um grãozinho de irritação em seu coração (o truque é criar uma pérola, não uma úlcera). E afinal, quem quer andar com gente que concorda com você o tempo inteiro? Opiniões diferentes fazem parte da química. Por exemplo: continuo achando incrível como minhas letras melhoram com as contribuições de Alex e Geddy. Juntos, temos de enfrentar a enlouquecedora complexidade das forças que nos cercam. A mecânica de dirigir uma grande organização, as chateações do mundo dos negócios, a erosão da privacidade, a ausência do lar e, às vezes, o tédio de uma turnê longa demais que destrói nossa alma (meu lema é "a única coisa pior que excursionar é não excursionar").

Então fazemos o que tem de ser feito, e tentamos balancear isso com os desafios e satisfações de nossas vidas privadas. Nosso trabalho é despejar o máximo que podemos no caldeirão fervente que é o Rush, sendo tributários de um rio maior que nós. Adicionar faíscas ao fogo. Levar nossos reflexos ao espelho. É assim que buscamos a felicidade.

E esse é o segredo, no final das contas. "A busca da felicidade" pode ser a frase mais brilhante da história, mas muitas pessoas esquecem que o que estamos buscando de fato é a felicidade. Não prazeres efêmeros, não comodidade, não cabelo soltinho ou corpos perfeitos. Simplesmente queremos apreciar a montanha enquanto estamos escalando. Os caminhos na subida podem ser os mais árduos, mas é de lá que se vê as mais belas paisagens.

E na nossa maneira de pensar, podemos continuar a subir. Simplesmente temos que combater a ferrugem da preguiça, os desejos do mercado e a patina desinteressante do cinismo. Perseguir um estado tão complicado e elusivo não é simples, claro, mas enquanto estivermos perseguindo aprendemos uma coisa - que tudo é uma caçada, e que podemos muito bem colocar as mãos à obra.

Esse é o segredo, se é que ele existe.