Biografia de Clockwork Angels por Neil Peart

20 MAI 2012











O site da gravadora Roadrunner Records disponibilizou recentemente a biografia completa de Clockwork Angels, escrita por Neil Peart. O baterista fala sobre todo o processo de concepção do álbum ao longo de três anos, explicando as composições, inspirações e outros detalhes muito interessantes. Trazemos o material inteiramente traduzido para você.

Clockwork Angels
Por Neil Peart

Sem dúvidas, nesse momento, depois de estarmos juntos há quase 38 anos (e mais ou menos uma década ou duas antes disso), Alex, Geddy e eu alcançamos nossos "anos maduros". No entanto, chegamos quentes e suados de trabalho, deslizando na terceira base, uma banda de turnês. Assim como nossa amizade bem-humorada, nossa dedicação e inspiração permanecem fortes, combinadas com a experiência duramente conquistada e o conhecimento adquirido ao longo de vinte álbuns de estúdio e, talvez, acima de tudo, fazendo milhares de shows ao vivo.

Em dezembro de 2009 nós três nos reunimos para falar sobre o próximo ano. Enquanto comíamos, bebíamos e ríamos muito, coisas que fazemos tão bem, discutimos todos os projetos que poderíamos alcançar em 2010. Poderíamos começar a trabalhar em um novo álbum ou lançar uma grande turnê. Como tolos que somos, acabamos fazendo as duas coisas.

Talvez o vinho possa ser o culpado por isso - por nossa conversa ambiciosa sobre criarmos uma nova música que fosse "um pouco mais prolongada". Por sua vez, o vinho parecia me animar (In Vino Veritas - No Vinho Está a Verdade) a falar com os rapazes sobre a minha idéia de um mundo fictício, uma configuração possível para um conjunto de canções que contariam uma história. (A primeira canção, "Caravan", contém uma linha chave: "In a world where I feel so small, I can’t stop thinking big" (Em um mundo onde me sinto tão pequeno, não consigo parar de pensar grande).

Meu amigo Kevin J. Anderson foi um dos pioneiros de um gênero da ficção científica que veio a ser chamado de "steampunk" – uma reação mais romântica e idealista contra os futuristas "cyberpunk", com seus cenários desumanizados, alienados e sua sociedade distópica. Nossas viagens anteriores para o futuro, como "2112" e "Red Barchetta", foram criadas dentro desse tipo mais obscuro de imaginação, buscando um efeito dramático e alegórico. Dessa vez pensei sobre as definições steampunk do "Futuro como deveria ter sido" ou "O futuro visto do passado" – conforme imaginado por Julio Verne e H. G. Wells no final do século XIX.

Os caras pareceram receptivos à idéia, e então comecei a trabalhar na história e em algumas letras definidas em "um mundo iluminado apenas pelo fogo" (título de uma história medieval escrita por William Manchester). Influências foram inevitáveis, mas ainda assim inesperadas para mim – uma vida inteira de leituras destiladas de dezenas de cenas, e algumas centenas de palavras. O enredo se baseia em Cândido, de Voltaire, com acenos de The Sot-Weed Factor de John Barth, Michael Ondaatje e Joseph Conrad em "The Anarchist", Robertson Davies e Herbert Gold em "Carnies", Daphne du Maurier em "The Wreckers", Cormac McCarthy e os primeiros exploradores espanhóis do sudoeste americano em "Seven Cities of Gold".

Este "um dos muitos mundos possíveis" é impulsionado pelo vapor, pelos mecanismos complexos de relógios e pela alquimia. O último elemento me ocorreu pois eu estava intrigado com a utilização de alguns símbolos alquímicos por Diane Ackerman em cada início de capítulo de seu An Alchemy of Mind. Eles pareciam elegantes, misteriosos e poderosos. Logo aprendi sobre todo um conjunto de hieróglifos rúnicos para elementos e processos, assim como fiz nas cartas de tarô para Vapor Trails e o jogo hindu Leela para Snakes and Arrows, me tornando um fascinado por tradições antigas. Assim que cada "capítulo" lírico se reuniu, escolhi um símbolo para representá-los, para o personagem ou momento. Estes acabariam sendo dispostos no relógio da capa, utilizados pela primeira vez no single "Caravan"/"BU2B" no começo de 2010. Desde então eles mudaram um pouco, na medida em que a história crescia, e você pode encontrar enxofre à uma hora para a crítica da fé "BU2B", ouro às seis em "Seven Cities of Gold", terra às onze para "The Garden" e assim por diante. (O "U" no nome Rush significa "amalgamação").

No inicio de janeiro de 2010, eu estava pronto para enviar um lote de letras para Alex e Geddy em Toronto. Eles se reuniram no estúdio caseiro de Geddy para apenas "brincar", tocando e vendo o que saía. Improvisação foi um tema importante trazido pela banda nesse álbum. Nas performances ao vivo, durante a turnê Time Machine em 2010-2011, visávamos sermos mais espontâneos em nossos "momentos nos holofotes", algo que se tornou uma ambição em comum e um espírito que carregamos para dentro de todos os elementos desse álbum. Pela primeira vez comecei as letras com a proverbial folha em branco, ao contrário da minha rotina habitual de desenvolvimento (e descarte) através de arquivos de linhas e títulos que coletei ao longo dos anos (chamo isso de "sucata"). Da mesma forma, a música foi composta dessa maneira elemental - Alex e Geddy no estúdio subterrâneo com guitarra e baixo, riffs e dedilhados, gravando tudo o que tocavam. Alex havia reunido uma coleção de idéias que acabaram se tornando a maior parte da canção "Clockwork Angels" e, logo que ouvi sua sensação rítmica, que era tão diferente para nós, minha resposta foi, "Quero tocar isso!".

No começo de 2011, antes da segunda metade da turnê Time Machine, eles se reuniram para tentar compor novamente. Com um pouco mais de dificuldades, eles pareciam passar mais tempo bebendo café e fazendo piadas estúpidas – exceto por algumas jams furiosas que, revisadas mais tarde, acabaram por se tornar os alicerces para "Carnies" e "Headlong Flight".

De um modo geral, Geddy ouvia novamente suas jams observando os trechos mais convincentes, para então montá-los em um arranjo aleatório. Então se voltavam ao monte de letras que eu havia enviado, verificando se alguma delas iria bem com aquela música. Às vezes, como em "Seven Cities of Gold", havia uma faísca imediata de conexão. Como Alex diz, "Conversamos sobre termos um início estridente relacionado ao meio da sessão 'solo' e, a medida que a música evoluía, assumia um caráter próprio; ao entrar na cidade de ambiente selvagem, uma perigosa experiência sensorial era oferecida". Outros casamentos entre música e palavras foram trabalhosos, que renderam uma enxurrada de e-mails entre Geddy e eu. Trocas rápidas discutidas sobre ajustes de linhas e frases, trechos excluídos e novos adicionados, tudo em tempo real, de modo que até mesmo a forma final das letras era mais ou menos improvisada. Mais tarde eu tentaria unir os restos de forma que ainda expressassem o que eu queria no começo – e essa parte não foi fácil. Eu tinha uma história complicada para contar, assim como personagens e idéias, entre outras coisas.

Um dos melhores solos de Alex data do estágio demo: os "espaços reservados" improvisadamente acabaram sendo inevitáveis. "Clockwork Angels" é um exemplo disso, assim como "The Garden" – algumas das canções que foram gravadas casualmente e montadas numa performance improvisada permanecem como suas favoritas pessoalmente. Como as canções foram construídas a partir de momentos espontâneos, trabalhamos nos arranjos juntos. Em seguida Alex (nosso cientista musical) me entregaria uma demo com duas versões da canção: uma com padrões de bateria que ele havia programado para suas propostas de arranjos e composições, que me davam uma sensação de perceber a dinâmica percussiva (além disso, Alex muitas vezes tinha boas idéias de um não-baterista que me inspiravam em direções alternativas), e outra apenas com um metrônomo.

As duas primeiras canções, "Caravan" e "BU2B", foram gravadas antes da turnê Time Machine, em abril de 2010, e várias outras canções haviam sido escritas até então. Após a pausa para os ensaios da turnê, tocando oitenta e um shows na America do Norte, America do Sul e Europa (um break), nós nos reunimos novamente em outubro de 2011, no Revolution Recording em Toronto. Alex e Geddy trabalharam em um pequeno estúdio por lá, continuando a compor e criando arranjos.

Para manter as composições frescas, um dia eles tentaram até trocar os instrumentos – Geddy na guitarra e Alex no baixo – o que acabou em uma canção ricamente melódica chamada "The Wreckers". Eles brincaram comigo dizendo que tocar os instrumentos "errados" os transformava nos Barenaked Ladies. (Aconteceu de eu estar com Ed Robertson naquela ocasião, e ele deu boas risadas com isso). Mas uma vez que estávamos de volta ao modo de gravação, retornávamos ao "velho mesmo de nós". No grande estúdio, minha bateria foi montada e estava pronta para que eu pudesse começar a aprender novas canções. Em torno da bateria, o engenheiro chefe Rich Chycki havia preparado todo o ambiente para gravação, então estávamos "prontos para voar". Tirando meu chapéu de cowboy de compositor de letras (já falei anteriormente que acho difícil me levar muito a serio quando estou usando um chapéu de cowboy), eu colocaria aqui meu chapéu de baterista (um gorro de oração africano – o qual a velocidade de ressonância é igualmente perfeita).

Minhas partes de bateria foram criadas de uma forma completamente diferente do que jamais fiz. No passar dos últimos anos, tenho trabalhado deliberadamente na busca de tornar minha bateria mais improvisada, especialmente em meus aquecimentos e solos, e estas sessões foram uma oportunidade para tentar essa abordagem no estúdio. Tudo começou com "Caravan" e "BU2B", que foram muito bem organizadas antes da gravação, mas que também contaram com um número de momentos espontâneos. Nessas sessões mais recentes, toquei cada canção algumas vezes à minha própria maneira, verificando padrões e preenchimentos que poderiam funcionar, algo incentivado por nosso co-produtor, Nick Raskulinecz - "O Poderoso Booujzhe".

(Um lembrete sobre esse apelido: Nick gosta de sugerir preenchimentos ultrajantes para eu tocar, fazendo mímicas, gestos físicos selvagens e efeitos sonoros: "Bloppida-bloppida-batubatu- whirrrrr-blop—booujzhe"! Esse último sendo a condução, com pratos e bumbo).

Então...Booujzhe parou ali no estúdio comigo, de frente para minha bateria, com uma estante de partituras e uma baqueta. Ele era o meu maestro, e eu sua orquestra. (Mais tarde substitui aquela baqueta por uma batuta de verdade).

Agora...músicas do Rush tendem a ter arranjos complicados, com números ímpares de batidas, compassos e medidas em todo lugar. Estas últimas canções não são diferentes (talvez piores – ou melhores, dependendo), mas a batuta de Booujzhe me conduzia nos coros, nas pontes e assim por diante – então eu não precisava me preocupar com suas durações. Sem contagem e sem a repetição incontável de cada canção para apenas aprender aquelas coisas, foi o que, em grande parte, me permitiu ser tão espontâneo. Nos últimos anos eu poderia ter passado vários dias a desenvolver e aperfeiçoar um trecho de bateria, mas dessa vez foi apenas uma questão de horas, "do zero a herói". Gosto de imaginar um ouvinte podendo sentir essa diferença – compartilhando a tensão e realização de um cara indo pra longe dali, tocando alguma coisa que ele nunca tentou antes, e apenas fazendo se tornar "uma". Chances são aqueles momentos que acontecem apenas uma vez – mas são suficientes. Por sua vez, as partes de baixo de Geddy e as partes de guitarra de Alex foram adicionadas sem muito tempo gasto na aprendizagem, mas se acertando na execução. Booujzhe era o maestro deles também, treinando e inspirando Geddy, Alex e Geddy novamente (vocais) com sugestões e incentivo, para níveis de absurdo cada vez maiores.

(Depois de todos esses anos juntos, aprendemos a gravar confortavelmente em separado - permitindo que nos concentremos em uma parte de cada vez, e a experiência nos ensinou que tocamos o mesmo – um para o outro – sem nos darmos conta).

O entusiasmado "Booujzhe", antes de me energizar e me inspirar, também ofereceu muitas sugestões entre as pausas. Nós rapidamente discutíamos (bem, eu criava a discussão!) a arquitetura básica da parte, o que demostrava os elementos-chave da colaboração – juntos nos elevamos.

Geralmente temos um "filho problemático". De todas as canções aparentemente mais complicadas, a música para "Wish Them Well" foi escrita e descartada duas vezes, sendo quase abandonada. Mas Geddy gostou da letra o bastante para que continuássemos tentando (obrigado!), e na terceira versão todos ficaram satisfeitos.

Essa canção também colocou Booujzhe e eu em apuros durante as partes de bateria. Mais do que em qualquer outra canção exceto "Headlong Flight" – essa por sua complexidade perversa, antes do que exatamente a simplicidade de "Wish Them Well", Booujzhe e eu passamos horas buscando diferentes padrões básicos, e fazendo malabarismos com seus arranjos.

(Os caras sempre riam quando eu entrava no estúdio resmungando, "Eu odeio aquela música ignorante estúpida!" [Adicione palavrões a gosto.] Eles riam porque eram os únicos que a fizeram daquela maneira). "Wish Them Well" foi igualmente esquiva vocalmente – ou pelo menos liricamente. O dia em que Geddy e Booujzhe gravaram aqueles vocais em Toronto, aconteceu de eu estar em casa na Califórnia, e todos os dias trocávamos e-mails e textos sobre a mais minúscula alteração, linha por linha, às vezes palavra por palavra. Por fim tudo terminou muito bem, mas admito ter ainda um pouco de rancor sobre ela. No lado brilhante – até mesmo o lado brilhante – um aspecto muito especial desse projeto são os arranjos de cordas exuberantes e exóticos feitos por David Campbell. Numa tarde de janeiro no Ocean Way Studios em Hollywood, eu estava na sala de controle ouvindo enquanto as cordas estavam sendo gravadas. Ocorreu-me que todos os compositores deveriam experimentar o prazer sensual de ouvir suas canções interpretadas por uma sessão de cordas. Quando esses artistas virtuosos no violino, viola, violoncelo, e contrabaixo executavam a orquestração para o Plano de Davi em "The Garden", não havia um único olho seco no estúdio.

Finalmente Booujzhe assumiu a cadeira da mixagem, nos divertindo com mímicas de nossas partes nota por nota, com gestos apropriados e expressões faciais. Quando ele colocava o punho à boca como um microfone, emulando cada frase e as nuances vocais de Geddy, às vezes ele levantava seu dedo mindinho. "Meu microfone sem fio", ele explicava. Ele havia mudado para o modo "performance ao vivo".

Outra meta se enraizou ao longo do tempo, em agosto de 2010, em um dia de folga entre os shows no Red Rocks Amphitheater no Colorado. Ao longo de vinte anos, tenho sido amigo do autor anteriormente mencionado e pioneiro do steampunk, Kevin J. Anderson, e a todo tempo discutimos sobre fazer um projeto juntos, combinando letras e prosa. Kevin morava perto, e me levou a uma caminhada ao Monte Evans no Colorado (14,265 pés), onde começamos a trabalhar numa versão em prosa para Clockwork Angels. Um ano e meio mais tarde, Kevin faria o "trabalho pesado" da romatização.

Portanto, mais uma vez, a colaboração se prova alegre e eleva a arte. Esse projeto tem despertado muitas fontes de pedra e aço, e uma qualidade partilhada por todos os envolvidos podendo ser chamada de "uma imaginação febril". Esse temperamento, ardendo ligeiramente mais quente do que o que passa por "normal", também descreve o diretor de arte Hugh Syme – que está cumprindo uma prisão perpétua sendo meu colaborador de artes gráficas. Hugh traz seus próprios sonhos febris para a Busca da Visão, e tudo que visualizo, ele pode realizar. O período de dois anos de gestação (literalmente elefantina) desse álbum deu tempo para que Hugh gerasse uma série de ilustrações lindamente evocativas para acompanhar a história – as palavras e música.

Mais uma ligação oblíqua: Durante as filmagens do meu mais recente DVD instrucional, TAKING CENTER STAGE: A Lifetime of Live Performance, me vi falando sobre tocar nossas canções mais antigas nos shows ano após ano, e algo me ocorreu sobre as músicas do Rush que eu nunca havia percebido em nossos trinta e oito anos. Veja, em sua maior parte, as músicas do Rush não foram feitas com a intensão de serem ouvidas no rádio, ou no carro, ou em fones de ouvido. Elas foram feitas para serem tocadas – por nós! (Bom título, "Made 2 B Played").

Essa qualidade de feita para ser executada é também claramente evidente em todas as canções de Clockwork Angels. Como nos dezenove álbuns que vieram antes, essas canções são "Feitas para serem tocadas" (Made 2 B Played), repetidas vezes por anos.

E, se o destino permitir, elas serão...

Pensando até mesmo em alguns exemplos mais antigos - "The Spirit of Radio", "Limelight" ou "Subdivisions" - os arranjos são detalhados e dinâmicos, complexos e desafiadores, e se desenvolvem em direção a um clímax de um show de rock. Nada disso jamais foi discutido por nós, sendo tudo instintivo. Nossas canções e arranjos foram tocados como peças de performances ao vivo. E certamente são essas técnicas desafiadoras no momento da emoção que mantém essas músicas novas para nós por todos esses anos.

Assim como Booujzhe, levantamos nossos dedos mindinhos quando estamos no modo performance ao vivo.