VOLTAR PARA "SNAKES & ARROWS"
VOLTAR PARA DISCOGRAFIA
VOLTAR PARA LETRAS E RESENHAS
WORKIN' THEM ANGELS THE LARGER BOWL SPINDRIFT
THE LARGER BOWL
(a pantoum)
if we're so much the same, like I always hear
why such different fortunes and fates?
some of us live in a cloud of fear
some live behind iron gates
why such different fortunes and fates?
some are blessed and some are cursed
some live behind iron gates
while others see only the worst
some are blessed and some are cursed
the golden one or scarred from birth
while others only see the worst
such a lot of pain on the earth
the golden one or scarred from birth
somethings can never be changed
such a lot of pain on this earth
It's somehow so badly arranged
some things can never be changed
some reasons will never come clear
it's somehow so badly arranged
if we're so much the same like I always hear
(a pantoum)
if we're so much the same, like I always hear
why such different fortunes and fates?
some of us live in a cloud of fear
some live behind iron gates
why such different fortunes and fates?
some are blessed and some are cursed
some live behind iron gates
while others see only the worst
some are blessed and some are cursed
the golden one or scarred from birth
while others only see the worst
such a lot of pain on the earth
the golden one or scarred from birth
somethings can never be changed
such a lot of pain on this earth
It's somehow so badly arranged
some things can never be changed
some reasons will never come clear
it's somehow so badly arranged
if we're so much the same like I always hear
A VASILHA MAIOR
(um pantoum)
se somos tão parecidos, como sempre ouço
por que sinas e destinos tão diferentes?
alguns de nós vivem numa nuvem de medo
alguns vivem atrás de portões de ferro
por que sinas e destinos tão diferentes?
alguns são abençoados e outros amaldiçoados
alguns vivem atrás de portões de ferro
enquanto outros só veem o pior
alguns são abençoados e outros amaldiçoados
o áureo ou o marcado desde o nascimento
enquanto outros só veem o pior
tanta dor na terra
o áureo ou o marcado desde o nascimento
algumas coisas nunca podem ser alteradas
tanta dor na terra
isso é de certa forma tão mal organizado
algumas coisas nunca podem ser alteradas
algumas razões nunca serão esclarecidas
isso é de certa forma tão mal organizado
se somos tão parecidos como sempre ouço
(um pantoum)
se somos tão parecidos, como sempre ouço
por que sinas e destinos tão diferentes?
alguns de nós vivem numa nuvem de medo
alguns vivem atrás de portões de ferro
por que sinas e destinos tão diferentes?
alguns são abençoados e outros amaldiçoados
alguns vivem atrás de portões de ferro
enquanto outros só veem o pior
alguns são abençoados e outros amaldiçoados
o áureo ou o marcado desde o nascimento
enquanto outros só veem o pior
tanta dor na terra
o áureo ou o marcado desde o nascimento
algumas coisas nunca podem ser alteradas
tanta dor na terra
isso é de certa forma tão mal organizado
algumas coisas nunca podem ser alteradas
algumas razões nunca serão esclarecidas
isso é de certa forma tão mal organizado
se somos tão parecidos como sempre ouço
Por que alguns têm mais do que outros?
"The Larger Bowl (A Pantoum)" é a quarta faixa de Snakes & Arrows. Foi lançada como o terceiro single do álbum no dia 25 de junho de 2007, especialmente em estações de rádio norte-americanas.
Seguramente, a canção se manifesta como um momento singular não somente no disco, mas em toda carreira do Rush. Trata-se de uma composição bastante atípica para os moldes de criações do trio, podendo ser, de certa forma, classificada como um trabalho de características relativamente experimentais. Bastante elegante, acessível e até mesmo radiofônica, "The Larger Bowl" é uma breve e bela balada acústica com pegadas que flertam com o folk, trazendo uma combinação incomum de sentimentos comoventes e cativantes e que preza pelo simples na complexidade de sua estrutura lírica exótica. Mesmo sem apresentar a ação costumeira e sempre labiríntica dos incríveis músicos, a canção aposta na melancolia e em harmonias encantadoras para trazer seu lamento intrínseco, construída por violões cristalinos combinados à ótimas guitarras, bateria sentimental e linhas vocais muito confiantes, estas que afirmam a maturidade de Geddy Lee como cantor. "The Larger Bowl" aborda sofrimentos, desigualdades, infortúnios e injustiças inerentes à vida, utilizando instigantes observações sobre a incoerente realidade do mundo.
"The Larger Bowl é totalmente conduzida pelo violão, e foi toda construída de forma acústica", explica Alex Lifeson. "Utilizei um Garrison G-50-CE e um G-50 de doze cordas. Acho que usei também um Gibson J-150 na segunda metade dos versos, a fim de conseguir uma sonoridade um pouco diferente. No estúdio, as faixas acústicas foram construídas principalmente com o J-150, com Garrisons de seis e doze cordas, um Larrivée de corpo pequeno e um Gibson J-55. Fiz o solo com minha Tele, trazendo um som mais limpo do que de costume. Quis que ele soasse assim, bem claro e brilhante. Você tem que estar confiante para esse tipo de solo, sendo capaz de se expressar mesmo com as limitações por estar sem o sustain de costume".
"Senti que precisávamos de uma canção de base acústica, uma 'Closer to the Heart' moderna que trouxesse um refrão cativante de verdade - e essa acabou por ser "The Larger Bowl"", explica o coprodutor Nick Raskulinecz ('Booujze').
"Essa canção é um verdadeiro banquete para um baterista, funcionando como uma variedade de deliciosos canapés entregues numa série de bandejas de prata (ou melhor, em vasilhas cada vez maiores)", compara Neil Peart. "Quase todos os segmentos da canção são diferentes, feitos para uma completa externalização em um acompanhamento simples de molde sessentista (sugestão de Hal Blaine), com preenchimentos loucamente sincopados. Tive a rara oportunidade de tocar pandeireta (sampleadas e reais) e de utilizar o chocalhar do 'Diamondback' da Paragon, estes que podem ser ouvidos claramente ao longo da construção e também no âmbito do quinto verso (nosso antigo coprodutor Peter Collins sempre chamou esses tipos de extração em colcheias de "tijolos voadores"). As variações (que aumentam gradualmente em todos os versos) foram uma ideia excelente de Booujze. Ele me fez ficar louco nessas pontes instrumentais que oferecem pequenas lacunas bem tentadoras para preenchimentos naturais de bateria, mas acabei fazendo conforme sua sugestão (acho que trouxe um pouco de Manu Katche e Joey Heredia aqui, além da minha própria abordagem mais passiva-agressiva). No começo, tentei convencê-lo que eu era mais um baterista compositor do que improvisador, mas ele continuou tentando me empurrar para paisagens de trechos como esse".
Antes mesmo de Booujze estar à bordo dos trabalhos em Snakes & Arrows, Lee, Lifeson e Peart já se encontravam ocupados com o estabelecimento dos fundamentos do álbum. Novamente, o processo do baterista começou em sua casa na Califórnia (EUA), com as letras. "Dessa vez bati em uma coisa nova inspirada no epitáfio de Robert Frost: 'Eu e o mundo tivemos uma briga de amantes'. Assim, algumas das minhas composições se tornaram canções de protesto. Moldei-as dessa forma, como se fossem um relacionamento entre eu e você, onde o 'você' se refere, na verdade, a um monte de pessoas no mundo com as quais nunca irei concordar".
Assim como a anterior "Workin' Them Angels", que resgata um trecho do livro Traveling Music: The Soundtrack to My Life and Times de 2004, "The Larger Bowl" vem do quinto capítulo de The Masked Rider: Cycling in West Africa. Lançado em 1996, The Masked Rider traz relatos do baterista sobre suas viagens de bicicleta pela África Ocidental em 1988. No capítulo intitulado The Larger Bowl, ele descreve um sonho que teve no Happy Hotel na República dos Camarões, após ter adquirido disenteria (doença inflamatória do intestino), sofrendo alucinações febris.
"Acordei tonto em meio a uma névoa, deitado de lado na cama, com as pernas entrelaçadas nos lençóis suados e mexendo minha cabeça até as bochechas balançarem. Que sonho estranho. Um helicóptero blindado havia me levado de Toronto para a costa leste do Canadá, voando para a traseira de um caminhão que me carregou por um túnel sob o Oceano Atlântico para Halifax (?). Aparentemente, eu estava lá para fazer uma entrevista, mas me vi numa loja de roupas conversando pelo telefone com um cara chamado Fletcher. Enfim... uma música tocava no lugar, uma balada melancólica chamada 'The Larger Bowl', que falava sobre solidão e infortúnios da vida pelo que lembro. Não recordo da música em si, mas gostei do título".
"Eu sabia que deveria escrever essa música, tornando um sonho realidade por assim dizer. De volta ao início dos anos 90, dei este título a algumas palavras parcialmente inspiradas pelo local do sonho, África, sobre o desequilíbrio de 'sorte e azar' da vida. Musicalmente, a música pareceu se beneficiar das inclinações estilísticas que descobrimos ou redescobrimos durante o projeto Feedback, quando gravamos um número de canções a partir das nossas influências mais remotas. Aquele espírito de entusiasmo juvenil, juntamente com o espírito dos anos 60, estão vivos em várias destas músicas".
Na passagem em questão, Neil traz alguns relatos sobre pessoas e situações de injustiça que observou no país, como o desequilíbrio no caso das mulheres, que carregam cargas muito mais pesadas em suas cabeças do que os homens ("As Vasilhas Maiores") e um grupo crianças que eram atormentadas pela maldade de um de seus irmãos:
Coisas Que As Mulheres Carregam em Suas Cabeças, Volume XIV: Cestos grandes cheios de verduras, bacias de metal, tubos de plástico, bacias de madeira cheias de frutas ou mandioca e sacos de estopa cheios de inhame. Até vi alguns homens uma vez, trabalhando com alguns sacos de estopa, mas eram todos idosos. Geralmente eram as mulheres que carregavam 'As Vasilhas Maiores'.
Assim que me sentei na varanda, enxugando o suor com minha bandana, uma família de crianças passeava e brincava próxima à uma loja, olhando-me curiosos com seus rostos agradavelmente sujos. As cinco crianças menores eram vigiadas por um irmão mais velho afetuoso de aproximadamente treze anos, que os repreendia delicadamente quando ficavam mais ousadas ou descuidadas. Ele era mantido especialmente alerta devido um menino mandão e atrevido de aproximadamente cinco anos, que ficava desfilando, comandando e atormentando seus irmãos. Aqueles que não faziam o que ele desejava ganhavam um tapa ou um chute pela resistência. Ele me deu um sorriso arrogante e um olhar desafiador, estufou o pequeno peito e ergueu os punhos, como se fosse me atacar. Eu sorri e o chamei de 'Le petit patron' - o pequeno chefe.
Uma de suas irmãs era como 'La sérieuse' (a séria) - uma doçura de rosto sóbrio de seis ou sete anos que se abaixou silenciosamente com seu vestido esfarrapado, olhando timidamente para mim e vendo as palhaçadas das outras crianças. 'Le petit patron' era o mais 'esquisito', claro, colocando o pênis à mostra e correndo por todo o local, acenando para todos. Finalmente foi capturado e subjugado pelo irmão mais velho, que o fez sentar em um banquinho. Isso durou um minuto, até que o tutor se distraiu com outra criança, que estava sentada mastigando terra.
Fui até a minha bicicleta e peguei um saco de balas de hortelã, dando-as para as crianças. 'Le petit patron' pegou a dele rapidamente, enquanto 'La sérieuse' esperou a dela sem nenhuma palavra, sorriso ou mudanças de expressão. Em seguida, ela se sentou com seus olhos tristes fixados na bala branca, como se esperasse a mesma desaparecer.
Você nunca viu crianças fazerem uma bala durar tanto tempo. Sem sugar ou mastigar, cada uma delas segurava o doce entre o indicador e o polegar sujo, apenas dando uma lambida ocasional. Nesse método econômico, fizeram os doces durarem cerca de quinze ou vinte minutos, exceto, é claro, 'Le petit patron', que logo devorou a sua e, em seguida, foi à procura de outra para roubar. Ele perseguiu e atormentou outro menino menor até que a vítima quebrou o restante da sua no meio e dividiu com o pequeno tirano. Era fácil ver quem tinha 'a vasilha maior' ali.
Uma das características mais interessantes de "The Larger Bowl" é sua curiosa estrutura lírica. A canção foi escrita sob a forma de um pantoum, um tipo de poema curto do século XV originário da Malásia, no qual as frases se repetem ao longo de seu curso sem soarem repetitivas. "À frente do meu dicionário de rimas há um índice de padrões tradicionais de versos, e tentei escrever alguns - como um exercício, como se estivesse resolvendo um jogo de palavras-cruzadas. Junto à sonetos, vilanelas e sextinas, gostei particularmente de um formato malaio chamado pantoum, e escrevi várias letras utilizando o esquema, incluindo 'The Larger Bowl'. Entretanto, nunca as enviei aos meus companheiros de banda até este álbum - quinze anos depois. Deve ter sido o momento certo pois, para minha satisfação, Alex e Geddy responderam positivamente ao desafio e à sua construção incomum. Você captura a segunda e a quarta linha de uma estrofe fazendo delas a primeira e a terceira linha da próxima, com tudo tendo que se resolver em cinco estrofes, encerrando com a primeira frase utilizada. Nunca havia me preocupado em entregá-la aos outros caras antes, porém, nesse momento, voltei a olhá-la - pensando que talvez pudesse provocar em mim um eco musical. Dessa forma, ela nasceu. Seu refrão é arbitrário (na verdade é o quinto verso)".
A arte do encarte para "The Larger Bowl", que mostra o contraste entre um luxuoso Plymouth Belvedere vermelho e um simples carrinho de lata, traz um cenário de fundo rústico que já havia sido utilizado pelo artista gráfico Hugh Syme dez anos antes, na capa do álbum A Fistful Of Alice, do cantor de rock norte-americano Alice Cooper.
Sendo a vida indiscutivelmente repleta de caos, aleatoriedade e dor, como lidar com situações que expõem fraquezas em comum, como a irresponsabilidade e indiferença? Depois de décadas, as composições do Rush ainda seguem oferecendo a incrível fórmula de emanar vida e sentimento unindo palavras e música. Com a entrega das letras, os três canadenses passam a conectar ideias musicais sempre propondo um olhar mais profundo sobre questões como a existência, a força do ser humano e, no caso de Snakes & Arrows, filosofia e religião.
Muitas das composições de Peart ao longo da carreira trazem ponderações sobre diferenças e separações nocivas entre as pessoas, partindo de pontos de vista sociais, relacionais, culturais e econômicos. Essas são, certamente, algumas de suas preocupações mais marcantes em temas com a banda e, em "The Larger Bowl", essas angústias são novamente visitadas. Partindo de uma combinação de imagens e questões de certa maneira elementares, o músico confronta amplamente as visíveis e contraditórias desigualdades locais, regionais e mundiais (talvez as principais raízes de todo o caos contemporâneo) com os frequentes discursos que afirmam a inabalável equidade entre os homens. Desde o início como letrista, ele seguiu assumiu a responsabilidade interpessoal da transmissão de valores humanos e virtudes como empatia, compaixão e altruísmo, e muitas de suas canções mostram uma sintonia não somente com as realizações e conquistas de grandes personalidades de espíritos livres, mas também com as dores e lutas dos seres humanos comuns.
"The Larger Bowl" propõe pensamentos sobre como o arranjo da realidade é persistentemente contraditório e injusto, testemunhando de forma simples, porém não menos brilhante, a enorme disparidade entre ricos e pobres. Ao conhecer parte da África, Peart se deparou com uma série de cenários e situações de miséria e desespero que lhe incitaram reflexões sobre os inúmeros tipos de vida e destinos de seres humanos ao redor do mundo, muitas vezes presos à questões históricas, isolamento, domínio e opressão que lhes extirpam perspectivas mais amplas. A canção não traz uma arrogância simplória que pleiteia fórmulas, ideias definitivas e acusações unilaterais sobre mazelas tão delicadas, mas sim uma espécie de desabafo sincero sobre a vida confrontando discursos que afirmam e que garantem a igualdade de oportunidades e justiça entre as pessoas, geralmente baseadas em doutrinas e justificativas econômicas, ideológicas e religiosas.
As canções do Rush estão sempre abertas a variadas interpretações (muitas delas inclusive atemporais), e com "The Larger Bowl" a suposta justiça dos céus e da terra são os elementos que mais se destacam - ao lado das desigualdades sociais. Em suas poucas palavras, surgem reflexões sobre os processos relacionais na sociedade que limitam e prejudicam determinados grupos, classes ou círculos de pessoas, como o acesso aos direitos de voto, a liberdade de expressão e de reunião, a extensão dos direitos de propriedade e de acesso à educação, saúde, habitação e outros bens e serviços essenciais. Ao longo das últimas décadas, definitivamente, as mudanças sociais profundas e imediatas não acompanharam o desenvolvimento econômico. Potências globais surgiram, mas as populações pobres e sem oportunidade de mobilidade social ainda persistem. Infelizmente, essas desigualdades (internacionais e internas) continuam a se acentuar.
Quando Peart menciona em The Masked Rider as crianças que observou em Camarões, lembramos de como a educação seria a peça fundamental e indispensável para uma mudança de realidade para muitos indivíduos. A capacidade de ler e escrever e o acesso à informação e ao conhecimento estão intimamente ligados à possibilidade de alcance de oportunidades, o que significa que todas as pessoas, independente de suas origens sociais, deveriam ter chances iguais de alcançar uma posição desejável. Porém, o nível de desenvolvimento da vida de inúmeros não lhes dá o direito de escolherem um caminho melhor para perseguirem, principalmente por estarem inseridos em realidades extremamente adversas.
"The Larger Bowl" confronta prosperidade e miséria, e alguns trechos como "Some live behind iron gates" ("Alguns vivem atrás de portões de ferro") podem ser compreendidos como símbolos de proteção para ricos - mas, ao mesmo tempo, opressão ou tirania para os pobres. O tom de repetição do pantoum pode indicar que esses impasses tão elementares continuam praticamente imutáveis através dos tempos. Porém, suas características acessíveis e atmosfera simples ajudam a trazer a ideia de convite - para que todos busquem ampliar suas percepções e pensamentos sobre as fragilidades da sociedade contemporânea, compreendendo tais incoerências como nossas e não dos outros, questionando a realidade e reconhecendo que, mesmo com todo o avanço do nosso desenvolvimento, ainda há um longa estrada para um mundo mais justo.
© 2016 Rush Fã-Clube Brasil
"The Larger Bowl (A Pantoum)" é a quarta faixa de Snakes & Arrows. Foi lançada como o terceiro single do álbum no dia 25 de junho de 2007, especialmente em estações de rádio norte-americanas.
Seguramente, a canção se manifesta como um momento singular não somente no disco, mas em toda carreira do Rush. Trata-se de uma composição bastante atípica para os moldes de criações do trio, podendo ser, de certa forma, classificada como um trabalho de características relativamente experimentais. Bastante elegante, acessível e até mesmo radiofônica, "The Larger Bowl" é uma breve e bela balada acústica com pegadas que flertam com o folk, trazendo uma combinação incomum de sentimentos comoventes e cativantes e que preza pelo simples na complexidade de sua estrutura lírica exótica. Mesmo sem apresentar a ação costumeira e sempre labiríntica dos incríveis músicos, a canção aposta na melancolia e em harmonias encantadoras para trazer seu lamento intrínseco, construída por violões cristalinos combinados à ótimas guitarras, bateria sentimental e linhas vocais muito confiantes, estas que afirmam a maturidade de Geddy Lee como cantor. "The Larger Bowl" aborda sofrimentos, desigualdades, infortúnios e injustiças inerentes à vida, utilizando instigantes observações sobre a incoerente realidade do mundo.
"The Larger Bowl é totalmente conduzida pelo violão, e foi toda construída de forma acústica", explica Alex Lifeson. "Utilizei um Garrison G-50-CE e um G-50 de doze cordas. Acho que usei também um Gibson J-150 na segunda metade dos versos, a fim de conseguir uma sonoridade um pouco diferente. No estúdio, as faixas acústicas foram construídas principalmente com o J-150, com Garrisons de seis e doze cordas, um Larrivée de corpo pequeno e um Gibson J-55. Fiz o solo com minha Tele, trazendo um som mais limpo do que de costume. Quis que ele soasse assim, bem claro e brilhante. Você tem que estar confiante para esse tipo de solo, sendo capaz de se expressar mesmo com as limitações por estar sem o sustain de costume".
"Senti que precisávamos de uma canção de base acústica, uma 'Closer to the Heart' moderna que trouxesse um refrão cativante de verdade - e essa acabou por ser "The Larger Bowl"", explica o coprodutor Nick Raskulinecz ('Booujze').
"Essa canção é um verdadeiro banquete para um baterista, funcionando como uma variedade de deliciosos canapés entregues numa série de bandejas de prata (ou melhor, em vasilhas cada vez maiores)", compara Neil Peart. "Quase todos os segmentos da canção são diferentes, feitos para uma completa externalização em um acompanhamento simples de molde sessentista (sugestão de Hal Blaine), com preenchimentos loucamente sincopados. Tive a rara oportunidade de tocar pandeireta (sampleadas e reais) e de utilizar o chocalhar do 'Diamondback' da Paragon, estes que podem ser ouvidos claramente ao longo da construção e também no âmbito do quinto verso (nosso antigo coprodutor Peter Collins sempre chamou esses tipos de extração em colcheias de "tijolos voadores"). As variações (que aumentam gradualmente em todos os versos) foram uma ideia excelente de Booujze. Ele me fez ficar louco nessas pontes instrumentais que oferecem pequenas lacunas bem tentadoras para preenchimentos naturais de bateria, mas acabei fazendo conforme sua sugestão (acho que trouxe um pouco de Manu Katche e Joey Heredia aqui, além da minha própria abordagem mais passiva-agressiva). No começo, tentei convencê-lo que eu era mais um baterista compositor do que improvisador, mas ele continuou tentando me empurrar para paisagens de trechos como esse".
Antes mesmo de Booujze estar à bordo dos trabalhos em Snakes & Arrows, Lee, Lifeson e Peart já se encontravam ocupados com o estabelecimento dos fundamentos do álbum. Novamente, o processo do baterista começou em sua casa na Califórnia (EUA), com as letras. "Dessa vez bati em uma coisa nova inspirada no epitáfio de Robert Frost: 'Eu e o mundo tivemos uma briga de amantes'. Assim, algumas das minhas composições se tornaram canções de protesto. Moldei-as dessa forma, como se fossem um relacionamento entre eu e você, onde o 'você' se refere, na verdade, a um monte de pessoas no mundo com as quais nunca irei concordar".
Assim como a anterior "Workin' Them Angels", que resgata um trecho do livro Traveling Music: The Soundtrack to My Life and Times de 2004, "The Larger Bowl" vem do quinto capítulo de The Masked Rider: Cycling in West Africa. Lançado em 1996, The Masked Rider traz relatos do baterista sobre suas viagens de bicicleta pela África Ocidental em 1988. No capítulo intitulado The Larger Bowl, ele descreve um sonho que teve no Happy Hotel na República dos Camarões, após ter adquirido disenteria (doença inflamatória do intestino), sofrendo alucinações febris.
"Acordei tonto em meio a uma névoa, deitado de lado na cama, com as pernas entrelaçadas nos lençóis suados e mexendo minha cabeça até as bochechas balançarem. Que sonho estranho. Um helicóptero blindado havia me levado de Toronto para a costa leste do Canadá, voando para a traseira de um caminhão que me carregou por um túnel sob o Oceano Atlântico para Halifax (?). Aparentemente, eu estava lá para fazer uma entrevista, mas me vi numa loja de roupas conversando pelo telefone com um cara chamado Fletcher. Enfim... uma música tocava no lugar, uma balada melancólica chamada 'The Larger Bowl', que falava sobre solidão e infortúnios da vida pelo que lembro. Não recordo da música em si, mas gostei do título".
"Eu sabia que deveria escrever essa música, tornando um sonho realidade por assim dizer. De volta ao início dos anos 90, dei este título a algumas palavras parcialmente inspiradas pelo local do sonho, África, sobre o desequilíbrio de 'sorte e azar' da vida. Musicalmente, a música pareceu se beneficiar das inclinações estilísticas que descobrimos ou redescobrimos durante o projeto Feedback, quando gravamos um número de canções a partir das nossas influências mais remotas. Aquele espírito de entusiasmo juvenil, juntamente com o espírito dos anos 60, estão vivos em várias destas músicas".
Na passagem em questão, Neil traz alguns relatos sobre pessoas e situações de injustiça que observou no país, como o desequilíbrio no caso das mulheres, que carregam cargas muito mais pesadas em suas cabeças do que os homens ("As Vasilhas Maiores") e um grupo crianças que eram atormentadas pela maldade de um de seus irmãos:
Coisas Que As Mulheres Carregam em Suas Cabeças, Volume XIV: Cestos grandes cheios de verduras, bacias de metal, tubos de plástico, bacias de madeira cheias de frutas ou mandioca e sacos de estopa cheios de inhame. Até vi alguns homens uma vez, trabalhando com alguns sacos de estopa, mas eram todos idosos. Geralmente eram as mulheres que carregavam 'As Vasilhas Maiores'.
Assim que me sentei na varanda, enxugando o suor com minha bandana, uma família de crianças passeava e brincava próxima à uma loja, olhando-me curiosos com seus rostos agradavelmente sujos. As cinco crianças menores eram vigiadas por um irmão mais velho afetuoso de aproximadamente treze anos, que os repreendia delicadamente quando ficavam mais ousadas ou descuidadas. Ele era mantido especialmente alerta devido um menino mandão e atrevido de aproximadamente cinco anos, que ficava desfilando, comandando e atormentando seus irmãos. Aqueles que não faziam o que ele desejava ganhavam um tapa ou um chute pela resistência. Ele me deu um sorriso arrogante e um olhar desafiador, estufou o pequeno peito e ergueu os punhos, como se fosse me atacar. Eu sorri e o chamei de 'Le petit patron' - o pequeno chefe.
Uma de suas irmãs era como 'La sérieuse' (a séria) - uma doçura de rosto sóbrio de seis ou sete anos que se abaixou silenciosamente com seu vestido esfarrapado, olhando timidamente para mim e vendo as palhaçadas das outras crianças. 'Le petit patron' era o mais 'esquisito', claro, colocando o pênis à mostra e correndo por todo o local, acenando para todos. Finalmente foi capturado e subjugado pelo irmão mais velho, que o fez sentar em um banquinho. Isso durou um minuto, até que o tutor se distraiu com outra criança, que estava sentada mastigando terra.
Fui até a minha bicicleta e peguei um saco de balas de hortelã, dando-as para as crianças. 'Le petit patron' pegou a dele rapidamente, enquanto 'La sérieuse' esperou a dela sem nenhuma palavra, sorriso ou mudanças de expressão. Em seguida, ela se sentou com seus olhos tristes fixados na bala branca, como se esperasse a mesma desaparecer.
Você nunca viu crianças fazerem uma bala durar tanto tempo. Sem sugar ou mastigar, cada uma delas segurava o doce entre o indicador e o polegar sujo, apenas dando uma lambida ocasional. Nesse método econômico, fizeram os doces durarem cerca de quinze ou vinte minutos, exceto, é claro, 'Le petit patron', que logo devorou a sua e, em seguida, foi à procura de outra para roubar. Ele perseguiu e atormentou outro menino menor até que a vítima quebrou o restante da sua no meio e dividiu com o pequeno tirano. Era fácil ver quem tinha 'a vasilha maior' ali.
Uma das características mais interessantes de "The Larger Bowl" é sua curiosa estrutura lírica. A canção foi escrita sob a forma de um pantoum, um tipo de poema curto do século XV originário da Malásia, no qual as frases se repetem ao longo de seu curso sem soarem repetitivas. "À frente do meu dicionário de rimas há um índice de padrões tradicionais de versos, e tentei escrever alguns - como um exercício, como se estivesse resolvendo um jogo de palavras-cruzadas. Junto à sonetos, vilanelas e sextinas, gostei particularmente de um formato malaio chamado pantoum, e escrevi várias letras utilizando o esquema, incluindo 'The Larger Bowl'. Entretanto, nunca as enviei aos meus companheiros de banda até este álbum - quinze anos depois. Deve ter sido o momento certo pois, para minha satisfação, Alex e Geddy responderam positivamente ao desafio e à sua construção incomum. Você captura a segunda e a quarta linha de uma estrofe fazendo delas a primeira e a terceira linha da próxima, com tudo tendo que se resolver em cinco estrofes, encerrando com a primeira frase utilizada. Nunca havia me preocupado em entregá-la aos outros caras antes, porém, nesse momento, voltei a olhá-la - pensando que talvez pudesse provocar em mim um eco musical. Dessa forma, ela nasceu. Seu refrão é arbitrário (na verdade é o quinto verso)".
A arte do encarte para "The Larger Bowl", que mostra o contraste entre um luxuoso Plymouth Belvedere vermelho e um simples carrinho de lata, traz um cenário de fundo rústico que já havia sido utilizado pelo artista gráfico Hugh Syme dez anos antes, na capa do álbum A Fistful Of Alice, do cantor de rock norte-americano Alice Cooper.
Sendo a vida indiscutivelmente repleta de caos, aleatoriedade e dor, como lidar com situações que expõem fraquezas em comum, como a irresponsabilidade e indiferença? Depois de décadas, as composições do Rush ainda seguem oferecendo a incrível fórmula de emanar vida e sentimento unindo palavras e música. Com a entrega das letras, os três canadenses passam a conectar ideias musicais sempre propondo um olhar mais profundo sobre questões como a existência, a força do ser humano e, no caso de Snakes & Arrows, filosofia e religião.
Muitas das composições de Peart ao longo da carreira trazem ponderações sobre diferenças e separações nocivas entre as pessoas, partindo de pontos de vista sociais, relacionais, culturais e econômicos. Essas são, certamente, algumas de suas preocupações mais marcantes em temas com a banda e, em "The Larger Bowl", essas angústias são novamente visitadas. Partindo de uma combinação de imagens e questões de certa maneira elementares, o músico confronta amplamente as visíveis e contraditórias desigualdades locais, regionais e mundiais (talvez as principais raízes de todo o caos contemporâneo) com os frequentes discursos que afirmam a inabalável equidade entre os homens. Desde o início como letrista, ele seguiu assumiu a responsabilidade interpessoal da transmissão de valores humanos e virtudes como empatia, compaixão e altruísmo, e muitas de suas canções mostram uma sintonia não somente com as realizações e conquistas de grandes personalidades de espíritos livres, mas também com as dores e lutas dos seres humanos comuns.
"The Larger Bowl" propõe pensamentos sobre como o arranjo da realidade é persistentemente contraditório e injusto, testemunhando de forma simples, porém não menos brilhante, a enorme disparidade entre ricos e pobres. Ao conhecer parte da África, Peart se deparou com uma série de cenários e situações de miséria e desespero que lhe incitaram reflexões sobre os inúmeros tipos de vida e destinos de seres humanos ao redor do mundo, muitas vezes presos à questões históricas, isolamento, domínio e opressão que lhes extirpam perspectivas mais amplas. A canção não traz uma arrogância simplória que pleiteia fórmulas, ideias definitivas e acusações unilaterais sobre mazelas tão delicadas, mas sim uma espécie de desabafo sincero sobre a vida confrontando discursos que afirmam e que garantem a igualdade de oportunidades e justiça entre as pessoas, geralmente baseadas em doutrinas e justificativas econômicas, ideológicas e religiosas.
As canções do Rush estão sempre abertas a variadas interpretações (muitas delas inclusive atemporais), e com "The Larger Bowl" a suposta justiça dos céus e da terra são os elementos que mais se destacam - ao lado das desigualdades sociais. Em suas poucas palavras, surgem reflexões sobre os processos relacionais na sociedade que limitam e prejudicam determinados grupos, classes ou círculos de pessoas, como o acesso aos direitos de voto, a liberdade de expressão e de reunião, a extensão dos direitos de propriedade e de acesso à educação, saúde, habitação e outros bens e serviços essenciais. Ao longo das últimas décadas, definitivamente, as mudanças sociais profundas e imediatas não acompanharam o desenvolvimento econômico. Potências globais surgiram, mas as populações pobres e sem oportunidade de mobilidade social ainda persistem. Infelizmente, essas desigualdades (internacionais e internas) continuam a se acentuar.
Quando Peart menciona em The Masked Rider as crianças que observou em Camarões, lembramos de como a educação seria a peça fundamental e indispensável para uma mudança de realidade para muitos indivíduos. A capacidade de ler e escrever e o acesso à informação e ao conhecimento estão intimamente ligados à possibilidade de alcance de oportunidades, o que significa que todas as pessoas, independente de suas origens sociais, deveriam ter chances iguais de alcançar uma posição desejável. Porém, o nível de desenvolvimento da vida de inúmeros não lhes dá o direito de escolherem um caminho melhor para perseguirem, principalmente por estarem inseridos em realidades extremamente adversas.
"The Larger Bowl" confronta prosperidade e miséria, e alguns trechos como "Some live behind iron gates" ("Alguns vivem atrás de portões de ferro") podem ser compreendidos como símbolos de proteção para ricos - mas, ao mesmo tempo, opressão ou tirania para os pobres. O tom de repetição do pantoum pode indicar que esses impasses tão elementares continuam praticamente imutáveis através dos tempos. Porém, suas características acessíveis e atmosfera simples ajudam a trazer a ideia de convite - para que todos busquem ampliar suas percepções e pensamentos sobre as fragilidades da sociedade contemporânea, compreendendo tais incoerências como nossas e não dos outros, questionando a realidade e reconhecendo que, mesmo com todo o avanço do nosso desenvolvimento, ainda há um longa estrada para um mundo mais justo.
© 2016 Rush Fã-Clube Brasil