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FAR CRY ARMOR AND SWORD WORKIN' THEM ANGELS
ARMOR AND SWORD
The snakes and arrows a child is heir to
Are enough to leave a thousand cuts
We build our defenses, a place of safety
And leave the darker places unexplored
Sometimes the fortress is too strong
Or the love is too weak
What should have been our armor
Becomes a sharp and angry sword
Our better natures seek elevation
A refuge for the coming night
No one gets to their heaven without a fight
We hold beliefs as a consolation
A way to take us out of ourselves
Meditation, or medication
A comfort, or a promised reward
Sometimes that spirit is too strong
Or the flesh is too weak
Sometimes the need is just too great
For the solace we seek
The suit of shining armor
Becomes a keen and bloody sword
A refuge for the coming night
A future of eternal light
No one gets to their heaven without a fight
Confused alarms of struggle and flight
Blood is drained of color
By the flashes of artillery light
No one gets to their heaven without a fight
The battle flags are flown
At the feet of a god unknown
No one gets to their heaven without a fight
Sometimes the damage is too great
Or the will is too weak
What should have been our armor
Becomes a sharp and burning sword
The snakes and arrows a child is heir to
Are enough to leave a thousand cuts
We build our defenses, a place of safety
And leave the darker places unexplored
Sometimes the fortress is too strong
Or the love is too weak
What should have been our armor
Becomes a sharp and angry sword
Our better natures seek elevation
A refuge for the coming night
No one gets to their heaven without a fight
We hold beliefs as a consolation
A way to take us out of ourselves
Meditation, or medication
A comfort, or a promised reward
Sometimes that spirit is too strong
Or the flesh is too weak
Sometimes the need is just too great
For the solace we seek
The suit of shining armor
Becomes a keen and bloody sword
A refuge for the coming night
A future of eternal light
No one gets to their heaven without a fight
Confused alarms of struggle and flight
Blood is drained of color
By the flashes of artillery light
No one gets to their heaven without a fight
The battle flags are flown
At the feet of a god unknown
No one gets to their heaven without a fight
Sometimes the damage is too great
Or the will is too weak
What should have been our armor
Becomes a sharp and burning sword
ARMADURA E ESPADA
As cobras e flechas das quais uma criança é herdeira
São suficientes para deixar milhares de cortes
Construímos nossas defesas, um local seguro
E deixamos os locais mais escuros inexplorados
Às vezes a fortaleza é muito forte
Ou o amor é muito fraco
O que deveria ter sido nossa armadura
Torna-se uma espada afiada e furiosa
Nossas melhores naturezas buscam elevação
Um refúgio para a noite vindoura
Ninguém chega ao seu céu sem luta
Mantemos crenças como um consolo
Uma maneira de nos tirar de nós mesmos
Meditação ou medicação
Um conforto ou uma recompensa prometida
Às vezes esse espírito é muito forte
Ou a carne é muito fraca
Às vezes a necessidade é muito grande
Para o conforto que buscamos
O traje da armadura brilhante
Torna-se uma espada cortante e sangrenta
Um refúgio para a noite vindoura
Um futuro de luz eterna
Ninguém chega ao seu céu sem luta
Alarmes confusos de esforço e fuga
A cor do sangue é drenada
Pelos clarões da artilharia
Ninguém chega ao seu céu sem luta
Os estandartes são agitados
Aos pés de um deus desconhecido
Ninguém chega ao seu céu sem luta
Às vezes o dano é muito grande
Ou a vontade é muito fraca
O que deveria ter sido nossa armadura
Torna-se uma espada afiada e em chamas
As cobras e flechas das quais uma criança é herdeira
São suficientes para deixar milhares de cortes
Construímos nossas defesas, um local seguro
E deixamos os locais mais escuros inexplorados
Às vezes a fortaleza é muito forte
Ou o amor é muito fraco
O que deveria ter sido nossa armadura
Torna-se uma espada afiada e furiosa
Nossas melhores naturezas buscam elevação
Um refúgio para a noite vindoura
Ninguém chega ao seu céu sem luta
Mantemos crenças como um consolo
Uma maneira de nos tirar de nós mesmos
Meditação ou medicação
Um conforto ou uma recompensa prometida
Às vezes esse espírito é muito forte
Ou a carne é muito fraca
Às vezes a necessidade é muito grande
Para o conforto que buscamos
O traje da armadura brilhante
Torna-se uma espada cortante e sangrenta
Um refúgio para a noite vindoura
Um futuro de luz eterna
Ninguém chega ao seu céu sem luta
Alarmes confusos de esforço e fuga
A cor do sangue é drenada
Pelos clarões da artilharia
Ninguém chega ao seu céu sem luta
Os estandartes são agitados
Aos pés de um deus desconhecido
Ninguém chega ao seu céu sem luta
Às vezes o dano é muito grande
Ou a vontade é muito fraca
O que deveria ter sido nossa armadura
Torna-se uma espada afiada e em chamas
Um olhar sobre o outro lado da fé
A segunda canção de Snakes & Arrows é "Armor and Sword". Após a explosão inicial com "Far Cry", ocorre uma tendência curiosa pouco explorada pelo Rush durante sua carreira: a apresentação de uma faixa com características mais cadenciadas e moderadas logo nos primeiros momentos do disco. "Armor and Sword", de fato, revela as verdadeiras tendências de Snakes & Arrows - um álbum que caminhará majoritariamente por abordagens em torno da fé e da espiritualidade a partir de uma intensa e sempre tocante profundidade musical.
"Armor and Sword" é alicerçada em grandes harmonias. Sua síntese entre letra e música é relativamente simples, mas seu impacto emocional é chocante, comovente e filosófico. Permeada por elementos acústicos, a composição traz estruturas progressivas modernas de roupagens bastante envolventes e sensivelmente épicas. Sua marcante introdução percussiva teve como inspiração o padrão inicial utilizado pelo músico norte-americano de jazz e fusion Dave Weckl em "Mercy, Mercy, Mercy", faixa do primeiro volume de Burning For Buddy, tributo ao baterista Buddy Rich produzido por Neil Peart em 1994. Apontada como sua preferida no álbum, Peart brilha bastante em "Armor and Sword", oferecendo sua costumeira sensibilidade principalmente nos pratos sibilantes e no bumbo de incrível ênfase nas pontes. Alex Lifeson, por sua vez, executa um riff puro que envolve belíssimos acordes, harmônicos e arpejos num grande deleite que ainda combina violões dedilhados ao fundo, produzindo um efeito verdadeiramente surpreendente. É possível ouvir seus dedos deslizando nas cordas durante as passagens, embalando também os trechos elétricos dos refrões. A peça traz um tom melancólico belíssimo através da voz inconfundível de Geddy Lee, que canaliza todo poder para o tema lírico, exprimindo esse como um dos trabalhos mais intensos já produzidos pelo trio canadense.
Guerra e religião. Religião e guerra. Permutáveis por tantos séculos, são aqui capturadas de forma assustadora, revelando um esplendor semi-orquestral proveniente de verdadeiros filósofos musicais. A premissa é descomplicada: os mesmos elementos que o homem utiliza para proteção, otimismo, defesa e conforto podem se tornar também as armas para atacar e prejudicar outros que estão ao redor. "Armor and Sword" apresenta, certamente, uma das mais notáveis composições de Peart, propondo uma abrangente metáfora a partir da fé pessoal e de eventos ainda frequentes nas relações do mundo contemporâneo.
"Não teria chegado nessa exposição do mundo e da vida real se não tivesse atravessado as estradas secundárias da América, Canadá e Europa, cruzando pequenas cidades e observando como as pessoas conversam em postos de gasolina", diz Peart. "Todos esses momentos, olhando a vida de pessoas em lanchonetes e restaurantes, acabaram me revelando vários tipos e de forma bem ampla. Algo que me chamou a atenção foi a parte evangélica do Sul dos Estados Unidos, que acabou me inspirando diretamente na composição dessa canção".
Inicialmente, Peart não planejava trazer para o álbum considerações sobre os elementos que acompanhou durante suas viagens. Porém, ao deparar-se com uma placa de beira de estada que dizia "A fé é uma faculdade superior à razão", decidiu trabalhar nessa direção. "Nesse momento, ao narrar minhas viagens americanas, começo a pensar que, se a voz da razão é abafada por uma multidão evangélica, essa é mais uma razão para se falar disso. Anseios espirituais são naturais para muitas pessoas, pela possibilidade de lhes dar consolo ou esperança, mas extremistas de qualquer tipo não se contentam com a fé como armadura - eles buscam forjá-la como uma espada. Essa metáfora havia sido desenvolvida inicialmente para um dos meus livros, descrevendo o lado 'bom' da fé como sendo essa armadura, enquanto o 'mau' se revela como a espada".
"'Armor and Sword' combina o uso problemático da fé na forma do ataque de uma espada com a noção mais tolerante dela: uma proteção em momentos de dificuldade", explica o baterista.
É possível afirmar que "Armor and Sword" resume o cerne de Snakes & Arrows, ao mostrar perspectivas que dissociam a fé em duas faces. A canção aborda ainda a inclinação da anterior "Far Cry" (ao tratar também sobre a responsabilidade da herança deixada para as gerações vindouras), quando observa o conjunto de crenças e costumes que os filhos herdam de seus pais, para o bem ou para o mal.
"Pensei como Richard Dawkins em 'The God Delusion', que abordou crianças marcadas por uma fé em particular ao lado de outras bênçãos e cicatrizes primárias. Pessoas que escolhem sua fé ativamente estão desaparecendo aos poucos; a maioria simplesmente a recebe como o leite de suas mães, como a linguagem e os costumes. Observei também pessoas que são formadas por abusos prematuros de um tipo ou outro. Senti uma ligação com amigos que adotaram cães de resgate como animais de estimação, que lhes deram amor ilimitado, cuidado e segurança. Se esses animais fossem 'agredidos' em seus primeiros tratos - o que os deixaria nervosos, tímidos ou pior - poderiam ficar daquela forma para sempre, não importa o quão sereno o resto de suas vidas fosse. Me pareceu a mesma coisa com as crianças".
De fato, ao mesmo tempo que a fé religiosa moderada e responsável pode oferecer um significado primordial de fidelidade, caridade, bondade e respeito em sua relação com divindades e com o próximo, suas interpretações também se mostram por vezes como causas de muitos males. Pessoas que observam o mundo partindo, essencialmente, de percepções superficiais baseadas em tradições e convicções transferidas por laços culturais que se impõem como inquestionáveis, podem considerar que a realidade não é suficientemente satisfatória, passando a justificar sua fé como a única saída para moldá-la, causando conflitos em escalas diversas. A religião acaba perdendo seu sentido primordial nas mãos de muitos de seus líderes e fiéis, que a tornam uma simples razão ou desculpa para odiar e perseguir. Os fundamentalistas abandonam as acepções que funcionam como uma defesa para as dificuldades, passando a empunhá-las como justificativa para destruir aqueles que odeiam por simples medo ou oposição. Historicamente, em variados cenários e momentos, a exteriorização da fé caminha ao lado da discriminação e até mesmo agressão pura e simples, conforme evidenciado em inúmeros acontecimentos pretéritos e atuais, negociando armaduras por espadas. O que fica claro é que até mesmo a fé pode ser corruptível.
"Armor and Sword", através de sua poesia, se mostra como uma reflexão pessoal que pode ser percebida como outro comentário no álbum sobre tempos distorcidos, a partir de uma análise aberta em torno das maquinações das religiões e da fé. A canção acaba revivendo o tema experimentado em "The Weapon", faixa de Signals (1982), que tratava sobre poderosos utilizando o medo para oprimir e trazer multidões para seu seio. Em "Armor and Sword", os medos revelam a metástase daqueles que utilizam a fé não como o próprio conforto, mas para extirpá-lo de outros indivíduos.
As linhas introdutórias "The snakes and arrows a child is heir to are enough to leave a thousand cuts" ("As cobras e flechas das quais uma criança é herdeira são suficientes para deixar milhares de cortes"), faz referência à Hamlet e à antiga técnica de tortura chinesa conhecida como Morte por Mil Cortes. O Ling Chi, traduzido como fatiamento lento ou a morte lenta, foi praticado a partir de 900 d.C. até 1905, consistindo numa pena em que o torturador cortava e eliminava lentamente várias partes do corpo dos condenados, prolongando a vida das vítimas e a tortura pelo máximo tempo possível. De acordo com um dos princípios do pensador e filósofo Confúcio, um corpo cortado em pedaços nunca estaria completo na vida após a morte, como se a tortura perdurasse pela eternidade.
Indubitavelmente, o trecho refere-se à algum tipo de destruição gradual. Quando uma criança nasce, é garantido que esta terá que suportar uma caminhada de dificuldades, com situações que se desenrolam aos poucos, dia após dia, e muitas não sendo sequer percebidas - mas capazes de aniquilar a vida. Armaduras, espadas, cobras e flechas refletem conflitos e a luta contra a natureza pessoal, envenenada por intolerância e arrogância.
"Para expressar essa noção, apareci com 'The snakes and arrows a child is heir to / Are enough to leave a thousand cuts'. Acho que estava somente combinando 'fundas e flechas' de Hamlet com o jogo infantil 'Cobras e Escadas', buscando algo menos clichê. E, na verdade, enquanto discutíamos Snakes & Arrows como um possível título para o álbum, Geddy ressaltou, 'Gosto porque soa familiar, mas não é'".
Uma das inspirações primordiais de Peart para "Armor and Sword" veio de uma frase do poema Dover Beach, escrito em 1867 pelo poeta e crítico britânico Matthew Arnold (1822 - 1888). A exposição de Arnold à mentalidade e aos costumes da Inglaterra Vitoriana fez com que o autor mergulhasse no campo da crítica religiosa. Observando aquelas instituições, ele argumentava que as classes médias não sabiam como dirigir suas vidas por completo, como também não faziam uma leitura inteligente da Bíblia ou das missas. Para ele, o termo cultura relaciona-se às qualidades de uma mente desimpedida e inteligente, algo que se aproxima de um conhecimento profundo do passado da humanidade e da capacidade de aproveitamento dos melhores feitos das artes, literatura, história e filosofia. Para o autor, a cultura representa a mais efetiva maneira de curar as doenças de uma sociedade infectada.
"Enquanto trabalhava na letra para 'Armor and Sword', as imagens de um campo de batalha me fizeram lembrar a frase 'Where ignorant armies clash by night', de um poema que não me lembrava. Era do magnífico 'Dover Beach', de Matthew Arnold, e fiquei tão animado com seu sincronismo nas minhas próprias preocupações em muitas dessas canções que achava que deveria utilizá-la em alguma canção, como uma homenagem: 'Confused alarms of struggle and flight'".
A própria estrutura musical de "Armor and Sword" revela suas intenções, com os riffs se intensificando como uma doença que se alastra. "Armor and Sword", assim como "Far Cry", também não se dedica à críticas primárias aos sistemas de crenças, tão pouco soando como um apelo para sua eliminação. O que é questionado é a irracionalidade, a cegueira, superstições, dogmas e rituais que trazem como última preocupação a espiritualidade e o engrandecimento pessoal. Esse tipo de devoção cega pode levar os homens a atitudes destrutivas - comportamentos extremos baseados no ódio ou medo. A composição se preocupa com as amarras que podem dificultar o desenvolvimento pleno do homem, além da crescente e persistente fé manipulada e pervertida, transfigurada em conceitos de ódio, desumanização do semelhante e violência, descrita aqui com maestria através de metáforas ameaçadoras.
© 2016 Rush Fã-Clube Brasil
A segunda canção de Snakes & Arrows é "Armor and Sword". Após a explosão inicial com "Far Cry", ocorre uma tendência curiosa pouco explorada pelo Rush durante sua carreira: a apresentação de uma faixa com características mais cadenciadas e moderadas logo nos primeiros momentos do disco. "Armor and Sword", de fato, revela as verdadeiras tendências de Snakes & Arrows - um álbum que caminhará majoritariamente por abordagens em torno da fé e da espiritualidade a partir de uma intensa e sempre tocante profundidade musical.
"Armor and Sword" é alicerçada em grandes harmonias. Sua síntese entre letra e música é relativamente simples, mas seu impacto emocional é chocante, comovente e filosófico. Permeada por elementos acústicos, a composição traz estruturas progressivas modernas de roupagens bastante envolventes e sensivelmente épicas. Sua marcante introdução percussiva teve como inspiração o padrão inicial utilizado pelo músico norte-americano de jazz e fusion Dave Weckl em "Mercy, Mercy, Mercy", faixa do primeiro volume de Burning For Buddy, tributo ao baterista Buddy Rich produzido por Neil Peart em 1994. Apontada como sua preferida no álbum, Peart brilha bastante em "Armor and Sword", oferecendo sua costumeira sensibilidade principalmente nos pratos sibilantes e no bumbo de incrível ênfase nas pontes. Alex Lifeson, por sua vez, executa um riff puro que envolve belíssimos acordes, harmônicos e arpejos num grande deleite que ainda combina violões dedilhados ao fundo, produzindo um efeito verdadeiramente surpreendente. É possível ouvir seus dedos deslizando nas cordas durante as passagens, embalando também os trechos elétricos dos refrões. A peça traz um tom melancólico belíssimo através da voz inconfundível de Geddy Lee, que canaliza todo poder para o tema lírico, exprimindo esse como um dos trabalhos mais intensos já produzidos pelo trio canadense.
Guerra e religião. Religião e guerra. Permutáveis por tantos séculos, são aqui capturadas de forma assustadora, revelando um esplendor semi-orquestral proveniente de verdadeiros filósofos musicais. A premissa é descomplicada: os mesmos elementos que o homem utiliza para proteção, otimismo, defesa e conforto podem se tornar também as armas para atacar e prejudicar outros que estão ao redor. "Armor and Sword" apresenta, certamente, uma das mais notáveis composições de Peart, propondo uma abrangente metáfora a partir da fé pessoal e de eventos ainda frequentes nas relações do mundo contemporâneo.
"Não teria chegado nessa exposição do mundo e da vida real se não tivesse atravessado as estradas secundárias da América, Canadá e Europa, cruzando pequenas cidades e observando como as pessoas conversam em postos de gasolina", diz Peart. "Todos esses momentos, olhando a vida de pessoas em lanchonetes e restaurantes, acabaram me revelando vários tipos e de forma bem ampla. Algo que me chamou a atenção foi a parte evangélica do Sul dos Estados Unidos, que acabou me inspirando diretamente na composição dessa canção".
Inicialmente, Peart não planejava trazer para o álbum considerações sobre os elementos que acompanhou durante suas viagens. Porém, ao deparar-se com uma placa de beira de estada que dizia "A fé é uma faculdade superior à razão", decidiu trabalhar nessa direção. "Nesse momento, ao narrar minhas viagens americanas, começo a pensar que, se a voz da razão é abafada por uma multidão evangélica, essa é mais uma razão para se falar disso. Anseios espirituais são naturais para muitas pessoas, pela possibilidade de lhes dar consolo ou esperança, mas extremistas de qualquer tipo não se contentam com a fé como armadura - eles buscam forjá-la como uma espada. Essa metáfora havia sido desenvolvida inicialmente para um dos meus livros, descrevendo o lado 'bom' da fé como sendo essa armadura, enquanto o 'mau' se revela como a espada".
"'Armor and Sword' combina o uso problemático da fé na forma do ataque de uma espada com a noção mais tolerante dela: uma proteção em momentos de dificuldade", explica o baterista.
É possível afirmar que "Armor and Sword" resume o cerne de Snakes & Arrows, ao mostrar perspectivas que dissociam a fé em duas faces. A canção aborda ainda a inclinação da anterior "Far Cry" (ao tratar também sobre a responsabilidade da herança deixada para as gerações vindouras), quando observa o conjunto de crenças e costumes que os filhos herdam de seus pais, para o bem ou para o mal.
"Pensei como Richard Dawkins em 'The God Delusion', que abordou crianças marcadas por uma fé em particular ao lado de outras bênçãos e cicatrizes primárias. Pessoas que escolhem sua fé ativamente estão desaparecendo aos poucos; a maioria simplesmente a recebe como o leite de suas mães, como a linguagem e os costumes. Observei também pessoas que são formadas por abusos prematuros de um tipo ou outro. Senti uma ligação com amigos que adotaram cães de resgate como animais de estimação, que lhes deram amor ilimitado, cuidado e segurança. Se esses animais fossem 'agredidos' em seus primeiros tratos - o que os deixaria nervosos, tímidos ou pior - poderiam ficar daquela forma para sempre, não importa o quão sereno o resto de suas vidas fosse. Me pareceu a mesma coisa com as crianças".
De fato, ao mesmo tempo que a fé religiosa moderada e responsável pode oferecer um significado primordial de fidelidade, caridade, bondade e respeito em sua relação com divindades e com o próximo, suas interpretações também se mostram por vezes como causas de muitos males. Pessoas que observam o mundo partindo, essencialmente, de percepções superficiais baseadas em tradições e convicções transferidas por laços culturais que se impõem como inquestionáveis, podem considerar que a realidade não é suficientemente satisfatória, passando a justificar sua fé como a única saída para moldá-la, causando conflitos em escalas diversas. A religião acaba perdendo seu sentido primordial nas mãos de muitos de seus líderes e fiéis, que a tornam uma simples razão ou desculpa para odiar e perseguir. Os fundamentalistas abandonam as acepções que funcionam como uma defesa para as dificuldades, passando a empunhá-las como justificativa para destruir aqueles que odeiam por simples medo ou oposição. Historicamente, em variados cenários e momentos, a exteriorização da fé caminha ao lado da discriminação e até mesmo agressão pura e simples, conforme evidenciado em inúmeros acontecimentos pretéritos e atuais, negociando armaduras por espadas. O que fica claro é que até mesmo a fé pode ser corruptível.
"Armor and Sword", através de sua poesia, se mostra como uma reflexão pessoal que pode ser percebida como outro comentário no álbum sobre tempos distorcidos, a partir de uma análise aberta em torno das maquinações das religiões e da fé. A canção acaba revivendo o tema experimentado em "The Weapon", faixa de Signals (1982), que tratava sobre poderosos utilizando o medo para oprimir e trazer multidões para seu seio. Em "Armor and Sword", os medos revelam a metástase daqueles que utilizam a fé não como o próprio conforto, mas para extirpá-lo de outros indivíduos.
As linhas introdutórias "The snakes and arrows a child is heir to are enough to leave a thousand cuts" ("As cobras e flechas das quais uma criança é herdeira são suficientes para deixar milhares de cortes"), faz referência à Hamlet e à antiga técnica de tortura chinesa conhecida como Morte por Mil Cortes. O Ling Chi, traduzido como fatiamento lento ou a morte lenta, foi praticado a partir de 900 d.C. até 1905, consistindo numa pena em que o torturador cortava e eliminava lentamente várias partes do corpo dos condenados, prolongando a vida das vítimas e a tortura pelo máximo tempo possível. De acordo com um dos princípios do pensador e filósofo Confúcio, um corpo cortado em pedaços nunca estaria completo na vida após a morte, como se a tortura perdurasse pela eternidade.
Indubitavelmente, o trecho refere-se à algum tipo de destruição gradual. Quando uma criança nasce, é garantido que esta terá que suportar uma caminhada de dificuldades, com situações que se desenrolam aos poucos, dia após dia, e muitas não sendo sequer percebidas - mas capazes de aniquilar a vida. Armaduras, espadas, cobras e flechas refletem conflitos e a luta contra a natureza pessoal, envenenada por intolerância e arrogância.
"Para expressar essa noção, apareci com 'The snakes and arrows a child is heir to / Are enough to leave a thousand cuts'. Acho que estava somente combinando 'fundas e flechas' de Hamlet com o jogo infantil 'Cobras e Escadas', buscando algo menos clichê. E, na verdade, enquanto discutíamos Snakes & Arrows como um possível título para o álbum, Geddy ressaltou, 'Gosto porque soa familiar, mas não é'".
Uma das inspirações primordiais de Peart para "Armor and Sword" veio de uma frase do poema Dover Beach, escrito em 1867 pelo poeta e crítico britânico Matthew Arnold (1822 - 1888). A exposição de Arnold à mentalidade e aos costumes da Inglaterra Vitoriana fez com que o autor mergulhasse no campo da crítica religiosa. Observando aquelas instituições, ele argumentava que as classes médias não sabiam como dirigir suas vidas por completo, como também não faziam uma leitura inteligente da Bíblia ou das missas. Para ele, o termo cultura relaciona-se às qualidades de uma mente desimpedida e inteligente, algo que se aproxima de um conhecimento profundo do passado da humanidade e da capacidade de aproveitamento dos melhores feitos das artes, literatura, história e filosofia. Para o autor, a cultura representa a mais efetiva maneira de curar as doenças de uma sociedade infectada.
"Enquanto trabalhava na letra para 'Armor and Sword', as imagens de um campo de batalha me fizeram lembrar a frase 'Where ignorant armies clash by night', de um poema que não me lembrava. Era do magnífico 'Dover Beach', de Matthew Arnold, e fiquei tão animado com seu sincronismo nas minhas próprias preocupações em muitas dessas canções que achava que deveria utilizá-la em alguma canção, como uma homenagem: 'Confused alarms of struggle and flight'".
A própria estrutura musical de "Armor and Sword" revela suas intenções, com os riffs se intensificando como uma doença que se alastra. "Armor and Sword", assim como "Far Cry", também não se dedica à críticas primárias aos sistemas de crenças, tão pouco soando como um apelo para sua eliminação. O que é questionado é a irracionalidade, a cegueira, superstições, dogmas e rituais que trazem como última preocupação a espiritualidade e o engrandecimento pessoal. Esse tipo de devoção cega pode levar os homens a atitudes destrutivas - comportamentos extremos baseados no ódio ou medo. A composição se preocupa com as amarras que podem dificultar o desenvolvimento pleno do homem, além da crescente e persistente fé manipulada e pervertida, transfigurada em conceitos de ódio, desumanização do semelhante e violência, descrita aqui com maestria através de metáforas ameaçadoras.
© 2016 Rush Fã-Clube Brasil