NEIL PEART FALA SOBRE SEUS SOLOS NA REVISTA RHYTHM



05/05/2014



As edições de março e abril de 2014 da revista britânica Rhythm trouxeram uma longa matéria com Neil Peart, onde o baterista conta em duas partes todos os detalhes dos seus solos de bateria na Clockwork Angels Tour. Acompanhem a tradução completa.

Texto: Neil Peart
Transcrição original: Cygnus X-1
Fotos: Joby Sessions
Tradução: Leo Skinner
Termos técnicos: Vito Montanaro (Rush Project - SP) e Diego Coutinho (Red Star - PE)
Revisão e formatação: Vagner Cruz


Na primeira de duas partes com sua abordagem sobre solos, Neil Peart destila cada um dos seus no show Clockwork Angels Tour, e explica o porque é 'tudo sobre o kit de bateria'

Quando escrevi a um amigo, com o qual estava trabalhando numa história sobre os meus solos no DVD Clockwork Angels Tour e sobre solos de bateria em geral, sua reação foi me enviar a ilustração de "Alice No País dos Espelhos". Muito perfeito!

Temo que isso seja como todos os solos de bateria soam para muitas pessoas, e isso é muito ruim. No entanto, acredito que a maioria dos humanos pode ter seu interior tocado pelos padrões rítmicos dos tambores – que certamente é a forma de musica mais antiga. Se um baterista puder combinar esse instinto primitivo com estrutura, conversação, invenção e um toque teatral, a audiência será alcançada, e até mesmo tocada.

Desde a minha primeira performance na bateria em um show de variedades no ensino médio em 1967, toquei solos em cada banda que fiz parte. Eles evoluíram conforme eu também, tendo sido alimentado dessa evolução, da mesma forma que os experimentos e exercícios técnicos aumentaram minha habilidade com o instrumento em cada aplicação.

Então... Espero que possamos concordar que esses solos de bateria podem ser bons para os bateristas, bons para o público e bons para os outros músicos. (Hora da pausa!)

Desde os ensaios para a Clockwork Angels Tour, no verão de 2011, estava animado por me encontrar com três 'quadros' completamente diferentes em cada solo – oportunidades para explorar interpretações separadas daquilo que os solos de bateria podem representar. Foi também uma mudança saudável em relação às outras turnês, nas quais sempre realizei uma só 'extravaganza'. Nos últimos 17 anos a banda tocou dois sets enormes com um intervalo, e meu solo sempre esteve na metade do segundo. Isso iria abalar esse hábito também.

A primeira 'semente' dessas mudanças veio quando estávamos mixando o álbum Clockwork Angels. Assim como descrevi para a revista Edge da DW:

No passado recente, sempre fiz solos enormes de quase nove minutos em algum momento no meio do segundo set. Mas... Durante as mixagens de Clockwork Angels, nosso produtor, Nick Raskulineckz, um irreprimível 'facilitador', insistiu que eu teria que fazer meu solo dentro do break de 'Headlong Flight'. Porém essa canção apareceria somente na metade do segundo set, e – "Jesus Cristo!" – ‘Headlong Flight’ traz sete minutos acelerados no meio da apresentação acelerada de uma hora das canções do Clockwork Angels, com ainda mais 30 ou 40 minutos restantes para percorrer. Além disso, após sair desse break na bateria, ainda teria que conduzir ao lado de um longo solo de guitarra, outro verso, ponte e um refrão duplo, tudo de forma rápida.

No mínimo era assustador. Mas... Novamente apliquei alguns 'pensamentos polirrítmicos'.

E se eu fizesse dois solos menores, um em cada set? Oh, sim – havia possibilidades. Finalmente essa noção evoluiu para três 'passeios'. O primeiro foi um solo mais tradicional no primeiro set, no meio da instrumental chamada "Where's My Thing?" ( Deste modo teve um titulo sorridente, 'Here It Is!')

No meio do segundo set, tive um break prolongado na bateria em "Headlong Flight", onde incorporei samplers das partes de baixo e guitarra – buscando criar uma versão de uma das minhas abordagens mais admiradas, como exemplificadas por Steve Smith ou Dave Weckl por exemplo. Falo de 'solar sobre as mudanças', onde o solo segura o tempo e a estrutura, enquanto a banda se une apenas em algumas batidas especificas ou frases. Ainda não convenci meus colegas a me ajudarem a criar o 'set-up' exato, mas será uma aproximação divertida. Um elemento superior é que, pelo fato de acionar o acompanhamento, posso improvisar livremente contra um conjunto de mudanças que é aleatória e não arranjada ou organizada.

Finalmente, no final do segundo set, irei fazer uma peça independente na bateria eletrônica, combinando os sons sintetizados mais melódicos de um patch da Roland V-Drums chamado 'Melodious' e mais outras amostras sampleadas selecionadas por mim e pelo programador de longa data da banda, Jim Burgess, que trazia um conceito mais 'cinematrográfico'. (Nós chamamos de esse setup de 'Steambanger'.) Aqui está um olhar mais detalhado sobre cada solo, começando com os comentários do percussionista Geoff Nicholls.

WHERE'S MY THING?
'HERE IT IS!'


Um solo muito potente no sentido mais tradicional (a banda deixa o palco no estilo dos anos 1960/70 – precisando de uma sinalização forte para retornar), porém com eletrônica, efeitos e disparadores adicionando impulsos sonoros e dramáticos perfeitos para shows em estádios. Portanto, esse é o solo de bateria expandido pelos eletrônicos, sem nunca perder de o fato de que você, obviamente, está adorando tocar o set acústico (talvez ainda o mais importante?)

Sim, o set acústico é tudo em uma bateria pra mim, em diversos sentidos. A 'série na plataforma' foi claramente elaborada para mim nos anos 80, quando comecei a experimentar as eletrônicas. Percebi imediatamente que elas teriam que ser como 'satélites' em todo kit principal, nunca substituindo qualquer um dos meus tambores ou pratos, apenas acrescentando-os.

(Isso me levou para o kit de trás e para a plataforma giratória, por volta de 1984.)

Esse solo concentra-se absolutamente nas vozes e tradições da bateria acústica. Os efeitos eletrônicos apenas adicionam atmosfera ou texturas sonoras incomuns, mesmo aqueles que ainda são todos tocados por mim, numa V-Drum ou pad Dauz, em um Mallekat ou num Kat Foot Trigger. Todo som que você ouve são acionados por uma baqueta ou pedal, disparados aleatoriamente.

Ao longo dos últimos anos, a improvisação tem sido uma grande aspiração para mim, tanto na criação de trechos para as canções quanto nos solos. Nesse espírito, esse solo foi abordado sem qualquer intenção que não seja o tema de destaque: solo tradicional com 'extras'. Eu poderia simplesmente lançá-lo na música, deixando que as dinâmicas subissem ou descessem para qualquer próxima 'cena' que me ocorresse. Acho que não consenti em tentar isso até os últimos ensaios, pois estava determinado em deixá-lo o mais fresco possível. Apenas daria a deixa para que Alex e Geddy voltassem para a música, e o restante seria... um mistério.

(Howard, o diretor de iluminação, ficou desconcertado com isso – acostumado com os meus solos 'compostos' habituais, onde sempre se pode programar e fixar as mudanças de iluminação. Mas se eu poderia improvisar, percebi que ele também poderia!)

Imediatamente adorei construir a parte de ritmo tercinado na caixa para o instrumental (obrigado Terry Bozzio que, por sua vez, agradece a Tony Williams!). Às vezes considero tal padrão irregular de construção tensa e de como mente, mãos e pés poderiam mantê-lo unido. Saindo direto daqui, essa parte determina a sensação inicial e o tempo e, depois disso, apenas me deixo seguir.

Isso foi perigoso no início, tudo bem, mas era o que eu queria. ('Perigo é o meu nome do meio' – bem, na verdade é Ellwood, mas ele nunca se importou!) Eu não teria tentado isso há cinco anos, mas esperava que a experiência fosse meu guia. Não apenas a experiência em tocar solos, é importante citar, mas também a experiência em ouvi-los.

Não me dói que minha primeira inspiração para tocar bateria foi o filme "A História de Gene Krupa", no qual o próprio cara atuou maravilhosamente, sendo muito bem dublado pelo ator Sal Mineo. Em retrospecto, dificilmente teria escolhido um ponto de partida melhor.

Considero-me sortudo por ter aprendido a tocar em meados da década de 60, e – de todos os lugares – no sul de Ontário. É verdade que comparado com agora, era difícil de 'ver' música ao vivo (raro na televisão e sem vídeos instrucionais, sites ou aplicativos). No entanto, pelo lado positivo, havia muitas bandas ao redor naquele tempo, e elas eram notavelmente 'musicistas'. (Parece que é a única palavra). Praticamente todos bateristas faziam um solo, e eu notava algumas coisas. Havia baterias que eu gostava muito quando tocavam com suas bandas, mas não por conta própria. Eles poderiam ter técnica, tudo bem, mas percebo agora que não tinham senso de fraseamento, estrutura, dinâmicas, tensão e liberação ou narrativa. Tudo o que eu sabia naquela época é que, enquanto admirava suas performances, não gostava dos seus solos.

Já outros solistas dessa época eram brilhantes e inspiradores. Dois exemplos canadenses inesquecíveis foram Skip Prokop com Lighthouse e Jerry Mercer com Mashmakhan. Skip tinha uma técnica brilhante – um baterista rudimentar campeão, eu me lembro – e entregava um solo soberbamente musical, enquanto o solo ao vivo de Jerry em 'Letter From Zambia' tinha todo o poder primitivo e dramático que o título sugere, parecendo contar uma história. Décadas mais tarde, suas influências ainda permanecem em meu ideal daquilo que um solo deve ser.

Minha única outra exposição ao rock de verdade (em oposição à rádio pop) naquela época primitiva eram os discos, e Ginger Baker certamente abriu as comportas com 'Toad' - o veículo para os meus primeiros solos. Outros solos dignos gravados por outros bateristas de rock da época eram o de Carmine Appice com Vanilla Fudge, Peter Rivera com Rare Earth e Michael Shrieve com Santana. (Woodstock, claro).

Em seguida havia o The Tonight Show e as várias aparições de Buddy Rich. Bem... Livremente confesso que naquela época não conseguia entender o que Buddy estava fazendo – estava muito acima de mim. Mas certamente senti algo parecido com o que Louie Bellson disse uma vez, "Há todos os grandes bateristas do mundo, e há o Buddy". Nunca quis alcançar esse nível de maestria. E continuo não querendo...

Ocorre-me que os movimentos do solo 'Here It Is!', na verdade, passaram a representar uma espécie de autobiografia na bateria. Não acho que seja um grande exagero dizer que os solos de bateria, no seu melhor, são tipos de narrativa.

Aprendi isso vivamente em um ponto da minha vida, conforme relatado no meu livro Ghost Rider. Depois de um período longo e difícil, no qual não toquei bateria por quase dois anos, providenciei um lugar calmo e privado onde seria capaz de sentar e tocar. (Não para ver se eu poderia – mas para ver se eu queria.) Conforme fui indo, apenas brincando com o que pensei ser um estilo sem sentido, percebi que estava contando a minha história. Pensando sobre os padrões e estados de espírito pelos quais vaguei, pensei, 'Isso é aquela parte, e isso é aquela outra', e assim por diante. Foi uma visão extraordinária, e me ajudou a me tornar 'reinspirado' no instrumento.

Ao analisar meu solo a partir da turnê R30 (2004) até o meu DVD instrucional Taking Center Stage, descobri que ele realmente tem uma história cronológica – mais ou menos a história da bateria na África e na Europa, onde eles se combinam com a música americana. Até mesmo o final big band pareceu preencher a conclusão dessa 'história'. Não havia planejado essa estrutura, mas devo acreditar que estava acontecendo algo subconscientemente.

No solo 'Here It Is!', os 'capítulos' tem as suas próprias histórias para contar. De cara, adorei a abertura freestyle na caixa me guiando com o bumbo da mesma forma quando eu era garoto, e que ainda funciona para mim.

E aqui está um profundo axioma que irei oferecer de graça: 'No solo de bateria, o que é excitante de tocar tem uma boa chance de ser excitante de se ouvir também'.

Essa é uma observação profunda. Nas explorações mais recentes na percussão, os ostinatos são uma grande parte da minha técnica de contar histórias. 'The Drum Also Waltzes' (A Bateria também Valsa) de Max Roach, me serviu para a prática e para solos de improviso por cerca de 20 anos, enquanto o xaxado brasileiro ("shashadoe") é um fascínio recente – só me atentei nos últimos dois ou três anos. Levei muito tempo para me sentir 'livre' sobre o tempo valsa, mas agora posso flutuar nele à vontade, em qualquer tempo ou compasso. Ainda não cheguei lá com o xaxado, mas estou feliz trabalhando nisso.

TUDO SOBRE O SET DE BATERIA

Aqui está mais uma forma de como é 'tudo sobre o set de bateria' para mim. No final dos anos 70 e começo dos anos 80, sempre quando me interessava pelo xilofone – ou nos anos 90 – com tambores percussivos e pensando em levar a sério, queria chegar a um ponto de virada automático. Percebendo a dedicação que seria necessária para dominar esses instrumentos, eu faria um 'retiro' do set de bateria. Isso porque, musicalmente, essa mistura de quatro expressões ativas já representava uma vida inteira de estúdio e recompensas. Fico feliz em dizer que, depois de 48 anos de devoção ao set de bateria, ele continua completamente gratificante – desafiador e excitante – para mim.

Por exemplo, quando nossa turnê Clockwork Angels de um ano terminou recentemente, estava feliz em deixar as baquetas de lado por um tempo. Nos últimos dez anos ou mais, meus colegas de banda e eu estivemos num ciclo quase constante de turnês e gravações, e durante esse tempo nunca pensei em ter uma bateria em casa. (É especialmente complicado viver no sul da Califórnia, onde os porões são raros, o que te faz ser muito elaborado para não ser "antissocial"). Sempre que preciso ensaiar para uma turnê, o estúdio Drum Channel fica a apenas uma hora pela estrada Pacific Coast. Às vezes, durante uma longa pausa, ainda vou até lá apenas para tocar por diversão, sem ensaiar, tocar ao vivo, ou gravar. Apenas para libertar meu corpo e minha mente para expressar o que quer que aflore.

Nesse mês de outubro, apenas dois meses depois do meu período autointitulado 'sabático', longe da bateria e das letras, meus amigos na Drum Workshop me convidaram para ir até a fábrica a fim de experimentar novas peles, e agarrei esse convite. Mais uma vez, uma oportunidade para tocar.

(Durante aquela hora que estive dirigindo até lá, também ri de mim mesmo por ter uma ideia lírica. 'Você não deveria estar fazendo isso ainda').

Retomando o solo 'Here It Is!', a sessão 'caixa flutuante' de rudimentos delicados é também uma das minhas favoritas pessoalmente. (Ocorre-me que ela não é tocada baseada em tempo, mas em pulso). Então, enquanto estabeleço golpes rápidos na caixa, trago o bumbo e o chimbau para o ostinato do xaxado brasileiro. Mais uma vez, essa sessão muda de noite para noite, geralmente introduzindo novos padrões que treinei no meu aquecimento antes do show.

Às vezes isso se resolve em frases de staccatos, com tercinas de pedal duplo e sincopes ímpares. Outras vezes eu iria resolver com outro artifício retornando aos meus primeiros solos, com as cruzadas de mão entre caixa e o surdo. (Inspiradas pelo meu primeiro professor, Don George, que uma vez me disse que essa independência dos quatro membros seria meu maior desafio. Ele não estava errado).

Como as passagens anteriores, essas nunca são fáceis, e cada uma dessas seções poderia variar bastante de noite para noite – dependendo dos meus picos humanos, mental e fisicamente. Como Somerset Maugham disse, 'Apenas um homem medíocre está sempre no melhor de sua forma'.

O melhor de tudo é quando as frases fluem – nunca sem esforço, mas quando meu trabalho é recompensando por meu próprio entusiasmo em torno daquilo que estou 'querendo alcançar'.
Repito, 'em solos, o que é emocionante de tocar tem uma boa chance de ser emocionante de se ouvir também'.


Na parte 2 de sua exploração esclarecedora de solos de bateria, Neil Peart decompõe outro de seus solos no Rush, revelando suas influências e considerando o futuro dos solos de bateria

Esse mês, eu vou me referir especialmente ao arranjo que ofereci na noite em que o DVD foi filmado (Clockwork Angels Tour). No decorrer da turnê, esses elementos muitas vezes apareceram em ordens diferentes (ouvindo novamente essa versão agora, estou satisfeito que todo o solo evoluiu muito durante os aproximados últimos 40 shows da turnê), mas para os nossos propósitos, vamos considerar esse como o 'único'.

Até o momento havia feito aquele solo algumas dezenas de vezes, uma série natural de 'movimentos' que surgiu a partir daquela abordagem livre – um arranjo dinâmico que parecia 'certo'. Não resisti a essa evolução. Ele se manteve fiel ao espírito da improvisação, já que cada elemento dentro dos movimentos foram deliberadamente proibidos de se tornarem fixos. Por exemplo, quando vou para a sessão sem caixa durante a valsa, gostaria de ter o trabalho de me dividir em diferentes áreas do kit todas as noites. Em cada sessão do solo, eu teria como objetivo manter as transições dentro e fora de todos os padrões que poderiam se repetir, variando o máximo que pudesse.

Um final para uma história ou para um solo de bateria é fundamental, mas a principio apenas deixei isso 'acontecer' também. Finalmente, ficou claro que a enxurrada de mãos e pés com acentos nos pratos era o clímax final – para mim e para o público.

O axioma pode ser, 'Se nada funcionar melhor, continue com isso'. (Até mesmo um baterista pode, por vezes, parecer um acéfalo).

No entanto, isso traz um ponto crítico. Assim como esse clímax, em outras seções eu poderia às vezes tropeçar em um padrão rítmico que realmente animasse o público, ouvindo e sentindo sua resposta. Achei ótimo que isso tenha acontecido naturalmente mas, apenas a principio, para preservar esse espírito, recusei deixar se tornar um 'artifício'. Pode parecer irresistível retornar para aquele padrão novamente, mas não todas as noites, e nunca do mesmo jeito.

Alguns podem achar que não há nada de errado com o encadeamento de uma série de tantos 'artifícios' (para não dizer 'truques'), que sempre funcionam para o público – afinal de contas, você supostamente está lá para ser o entretenimento – e alguns artistas ficariam felizes com esse resultado. Tais métodos são obviamente a fórmula com que as músicas country e pop são montadas. Mas para mim isso parece um exercício superficial. Conforme meu colega de banda Geddy disse uma vez sobre a ideia de sons terem 'ganchos', 'Nós não estamos tentando pegar peixes'.

E é por isso, oras, que solos de bateria quase nunca aparecem nos shows pop e country. Não fazem parte da fórmula. E perceba que o pop moderno quase nunca tem um único baterista de verdade, mas nos shows, sempre há um baterista de verdade. Para a dinâmica, a emoção, a ação de tudo. Eles ainda precisam de nós.

Eu quero contar uma história, não apenas tocar um rascunho. Dessa forma tenho que ser cuidadoso com esses truques. Alguns deles são apenas diversão, como os lançamentos das baquetas, e não afetam a música ou a 'pureza da intenção'. Isso é o que tem que ser guardado.

Coisa engraçada esse negócio de arremessar as baquetas. Ouvi falar dessas proezas malabaristas como uma criança, citando bateristas de big bands como Sonny Payne. Uma boa história de Buddy Rich, que amava o Sonny (ele o chamava de 'Funny' Payne), assistindo-o tocar na banda Count Basie com o meu antigo professor Freddie Gruber. Assim que Sonny girou e arremessou as baquetas para o alto e depois as pegou, Buddy se inclinou para Freddie e rosnou, "É melhor ele tomar cuidado – ele pode bater em algo". Eu também ouvi dizer que o baterista da Rascals, Dino DaneIli, usava tais truques, mas eu nunca vi.

Quando o Golden Earring abriu para nós no começo dos anos 80, vi Cesar Zuiderwijk fazendo isso, e achei legal. Então imediatamente (e descaradamente) comecei a copiá-lo. Era divertido de tentar fazer, e sempre arriscado. Na melhor das hipóteses, depois de 30 anos, eu consigo pegar nove de dez, mas ainda assim, algumas delas apenas 'fogem'. Quando a baqueta está no ar, o publico parece compartilhar a tensão comigo: 'Será que ele vai pegar?' Se eu pego, eles ficam tão aliviados quanto eu.

Costumava achar que tinha algum truque naquilo, como os malabaristas e mágicos têm os seus, e provavelmente caras como Sonny Payne poderiam fazer perfeitamente todas as vezes. Então Terry Bozzio me direcionou a um filme maravilhoso da banda Basie tocando na Suécia, e Sonny estava deixando as baquetas cair por todo lugar. Mas oh, quando ele 'acertava' – era uma doce perfeição.

'THE PERCUSSOR (I) – BINARY LOVE THEME (II) – STEAMBANGER'S BALL'

Menos 'baterístico' e muito mais cadenciado como uma percussão melódica, atmosférica, cinematográfica, clássica, de outro mundo, com toques de ficção científica e jogos de computadores... Rulos simples de 16 notas, mas disparando frases melódicas, sequências combinadas com chocalho e diferentes tipos de sons de chimbais

O título principal 'The Percussor' deriva diretamente do livro Clockwork Angels. O autor Kevin J. Anderson imaginou um baterista mecânico – 'The Percussor' - que iniciou uma perfomance hipnótica, mas que deixou uma baqueta cair, se despedaçando. (Essa foi uma das poucas cenas que contribui diretamente - eu poderia relatar!)

O subtítulo, 'Binary Love Theme', vem do meu parceiro de viagens de motos, Michael, que é um nerd que gosta de tentar me insultar. (E essas são as suas boas qualidades).

Durante os ensaios pré-turnê, meu técnico Lorn 'Gump' Wheaton trouxe um conjunto da nova geração da V-Drum ao lado do meu kit principal. Eu experimentaria suas capacidades entre as surras nos tambores 'reais'. Um número de kits de bateria programados, do tradicional ao sobrenatural, era divertido de tocar, mas eu continuava voltando nesse tal 'Melodious'. Poderia tocar nele por horas.

Assim como acontece com os efeitos eletrônicos anteriormente descritos, cada nota nesse solo é tocada. A diferença é que em alguns dos pads (chimbau, caixa, condução, pratos e cowbell) cada batida seria uma nota diferente em arpeggio. Os pratos de ataque foram sustentados por acordes menores, enquanto outros pads disparavam samplers de percussão. Nos quatro tons foram fixadas notas de piano, as quais pedi a Jim Burgess que as modificasse – adicionando um leve delay, para que soasse como notas arrancadas de uma harpa. Tocando isso no meu 'kit de trás', eu poderia continuar acertando algumas coisas da parte acústica, como surdos, a caixa piccolo e cowbells incorporados nessas peças.

O "Binary Love Theme" caminha entre uma série de movimentos, todos improvisados ou acrescidos de improvisação. A progressão básica nesse exemplo é de valsa para 4/4, depois para 7/8, mas ainda troco essa justaposição de noite para noite.

A propósito, bastante paradiddles são empregados para alcançar certas combinações de ritmo e melodia. Um lembrete para praticar tais rudimentos.

A segunda seção com ostinato rítmico e cowbells, sons de 'bloco' e batidas de outro mundo – efeitos steampunk – bumbo dentro do xaxado novamente (elétrico)... Melódico mas ainda condução....

Para essa parte, eu e Jim Burgess selecionamos um conjunto de sons industriais 'pré-eletrônicos'. Chapas metálicas e caldeiras de ferro, válvulas de liberação de vapor, bigornas, marretas, chiados e radares. Padrões improvisados construindo um tema repetitivo, funcionando como uma deixa para que o operador de vídeo, Davi Davidian, iniciasse as imagens que acompanham o filme 'Percussor'.

Isso não é feito com metrônomo, mas sim numa cooperação entre Dave e eu – o seu timing e o meu controle de tempo, podemos dizer.

De modo geral, uso metrônomo poucas vezes em nossos shows ao vivo – apenas para passagens sequenciadas que tem muito legato ou notas vagas, para que eu possa me manter sincronizado e, às vezes, por causa dos violinistas. (Manter 11 músicos juntos é exponencialmente mais complicado do que quando somos apenas nós três!)

No final, onde 'Percussor' se divide em partes, tento retratar uma 'desconstrução' do padrão, terminando com alguns assobios de trem a vapor. Porque...bem, apenas porque...

O FUTURO DO SOLO DE BATERIA

Finalmente, fui perguntado sobre o 'futuro' do solo de bateria. Como já havia mencionado, nos dias de hoje, o solo é ausente no 'mainstream' da música popular, mas arrisco dizer que tem sido assim desde os primórdios da música gravada. O jazz sempre abraçou a auto-expressão, liberdade e virtuosidade, e isso não mudou.

Alguns músicos do rock também aspiravam esses valores, mas em análise final, fica por conta do público.

A popularidade de músicas mais aventureiras tem fluxos e refluxos, mas parece que vai durar. Talvez nesses últimos tempos até mesmo a palavra 'progressivo' evoluiu de admirado para desprezado, e depois para modernamente respeitado.

Certamente sempre foi verdade que solos de bateria são mais empolgantes em concertos do que em gravações. Novamente, bateristas têm uma coisa visual acontecendo – o que hoje é chamado de 'ótica'. Se isso levanta a audiência, acredito que solos de bateria irão durar.

Porque por quase cem anos, através de incontáveis mudanças de estilo no cabelo, roupas e música, as pessoas se animam com um baterista tocando algo que as animam.

Está em nosso próprio sangue. Geralmente...

"Mas antes que Alice pudesse respondê-lo, a bateria começou. De onde vinha o barulho, ela não conseguia decifrar: o ar parecia cheio, e cercou completamente sua cabeça até se sentir totalmente protegida. Começou a correr e saltou através do pequeno riacho em seu terror, e teve tempo de ver apenas o Leão e o Unicórnio apertarem o passo, com olhares furiosos por seu banquete ter sido interrompido, antes dela cair de joelhos, e colocar suas mãos sobre os ouvidos, tentando em vão calar o barulho terrível".

"Se ISSO não 'batê-los da cidade', ela pensou consigo mesma, 'nada irá!'" (de Alice No País dos Espelhos, de Lewis Carroll).

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