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ATRÁS DO FOGO - OS BASTIDORES DE VAPOR TRAILS

Por Neil Peart

"Sucesso não resulta de uma combustão espontânea; você tem que se pôr no fogo".

Li esta frase escrita na parede de um bar em Montana, atribuída a alguém chamado Reggie Leach. Parecia um lugar improvável para encontrar inspiração, mas guardei comigo as palavras e pensei nelas mais de uma vez durante a produção do novo álbum do Rush.

Numa manhã fria, em janeiro de 2001, Geddy (Lee), Alex (Lifeson) e eu nos reunimos num pequeno estúdio em Toronto para recomeçarmos a trabalhar. Foram quase cinco anos desde Test for Echo, mas após 27 anos juntos e 16 discos lançados, estávamos esperançosos que a química entre nós seria reativada, que o fogo seria reaceso. Bem lá no fundo, estávamos apreensivos. Seríamos realmente capazes de juntar uma quantidade suficiente de músicas que gostássemos para completar um novo álbum? É sempre uma questão difícil e mais ainda desta vez, quando tanta coisa aconteceu em nossas vidas. Nos últimos cinco anos, Geddy e Alex produziram seus próprios projetos, para eles mesmos e para os outros, e cada um deles acostumou-se a ser o “Chefe Supremo de Tudo”. Por muitas razões, o processo de retomar a engrenagem tinha que ser gradual, exploratório e cuidadoso. Não traçamos parâmetros, objetivos, limitações, mas sim nos aproximamos de maneira relaxada e civilizada para este projeto. Sem pressa, pressão ou maratonas no estúdio - pela primeira vez na vida! Apenas nos mantivemos trabalhando, dia após dia, tentando tirar o melhor de cada um de nós e alimentar o fogo da colaboração e inspiração mútua.

Dentro do nosso padrão usual, Geddy e Alex começaram a trabalhar as ideias musicais na sala de controle do estúdio, enquanto eu me retirava em outra pequena sala com papel, caneta e computador para tentar montar as letras. Comecei pelo meu amontoado de notas e frases desconexas que guardo, buscando uma forma de costurá-las, enquanto os dois começaram simplesmente a tocar, improvisando numa bateria eletrônica junto com guitarra e baixo. Após duas semanas, eu já tinha algumas letras para lhes passar, mas parecia que eles ainda não estavam prontos para trabalhar sério, queriam apenas tocar. Às vezes, eu dava uma parada neste trabalho operário com as palavras, e descia ao estúdio principal para tocar minha bateria e passava em frente à sala onde eles estavam. Normalmente os ouvia tocando alguns riffs, explorando algumas direções interessantes e gravando tudo, mas não havia nenhuma música pronta ainda.

Nos encontrávamos no início ou no final do dia, e eu sabia que eles começavam a ficar excitados com suas descobertas, mas não queriam parar para fazer um trabalho relativamente tedioso, que é ouvir todas aquelas idéias cruas e escolher as melhores para montar uma estrutura coerente. Eu - que já tinha meia dúzia de letras concluídas - me senti um pouco inseguro sobre como proceder. Queria saber quais letras poderiam funcionar para eles, a fim de receber alguma resposta ou influência da direção que eles estavam tomando musicalmente. Então, dei um tempo na composição e comecei a escrever um livro, As One Does.

Geddy peneirou o que havia sido feito de melhor, encontrando um verso aqui, um refrão ali, e foi juntando os pedaços. Muitas vezes, um arranjo era tocado apenas uma vez, de passagem, mas com o uso das ferramentas de computador, ele podia ser repetido ou refeito por partes. A partir do momento que todas as letras, arranjos e gravações estavam prontas no computador, muito tempo foi loucamente gasto em monitores. Mas, na maioria das vezes, a nova tecnologia foi nossa amiga e nos ajudou a combinar espontaneidade e trabalho artesanal. É claro que a conversa foi a interface necessária, e, uma vez que os dois concordaram nas estruturas de base, Geddy viu as letras para sentir o que se encaixava bem na melodia. Depois, discutia comigo qualquer melhoria, adição ou retirada que eu quisesse fazer.

As canções começaram a surgir gradualmente. “Out of the Cradle” foi uma das primeiras, junto com “Vapor Trail”, “The Stars Look Down” e “Earthshine”. Esta última é notável por ser a única composição do Rush - que eu me lembre – de ter sido completamente reescrita, mantendo-se a mesma letra, mas substituindo cada parte musical. “...Cradle” também passou por sérias mudanças ao longo do tempo. E esta foi a proposta relaxada que escolhemos, o que nos permitiu reexaminar as canções com o luxo da perspectiva e consertar ou substituir quaisquer partes que não sobrevivessem ao teste do tempo. Às vezes, uma música em desenvolvimento parecia perder o ímpeto ou nossa crença (a força crítica) e era abandonada. Mas esta sempre foi nossa versão para a “seleção natural”.

Embora soubesse que algumas das letras que estavam sendo trabalhadas deveriam ter uma sensação para o contexto musical, prossegui com a escrita das mesmas. E mudando agora para minha capa de “baterista”, tinha alguns esboços das canções para trabalhar e comecei a gastar algumas noites durante a semana criando e refinando partes de bateria, tocando juntamente com os pré-arranjos das músicas e dos vocais, que eram meu roteiro. Alex foi meu produtor e coordenador pessoal de gravação, como tinha sido em muitos álbuns passados.

Vieram mais canções, como “Secret Touch”, “Sweet Miracle” e “How It Is” e, como frequentemente acontece, embora tivéssemos algumas canções terminadas que gostamos, as mais novas começaram a se tornar as mais estranhas. A audácia sempre cresce sem confiança (ou como os antigos gregos chamavam de "hubris", suponho), desta combinação vieram “One Little Victory”, “Ceiling Unlimited” e “Nocturne”.

Nesse período trabalhamos quase seis meses por conta própria, e sentimos que tínhamos material suficiente para oferecer a um “ouvinte profissional”, um co-produtor. Paul Northfield havia trabalhado conosco sendo coordenador de gravação em álbuns passados, como Moving Pictures e Signals no início dos anos 80, e em diversos registros ao vivo durante os anos (tanto como em meus tributos a Buddy Rich), mas esta foi à primeira vez que trabalhamos com ele numa direção mais criativa. Queríamos alguém que nos conhecesse bem o bastante (e também a nossa música) para fazer a lapidação correta dentro da área de composições e arranjos, porque havia ainda mais canções a serem escritas e organizadas nesse processo de transição até a gravação.

Essa foi uma diferença importante na maneira em que fizemos esse disco, comparado a alguns do passado. Costumávamos a ficar durante um período trabalhando nas composições, arranjando, e com nossas partes individuais, para então fazer um trabalho de pré-produção com um co-produtor de última hora, antes de nos mudarmos para uma grande temporada no estúdio, iniciando a gravação “oficial”. A pressão imposta em nós poderia ser produtiva, e geralmente eu em particular encontrava o que poderia me levar a um nível de desempenho que não havia alcançado antes, mas desta vez quisemos fazer diferente – algo mais gradual, com mais tempo para as revisões e renovações.

Dessa vez algumas canções foram trabalhadas durante alguns meses e estavam prontas para gravar, enquanto outras ainda estavam sendo desenvolvidas, e algumas não tinham sido nem mesmo escritas ainda. Assim, pela primeira vez estávamos prontos para trabalhar simultaneamente escrevendo as canções, arranjando as mais antigas, e gravando performances finais de músicas das quais estivéssemos “satisfeitos”. Geddy estava pronto para gravar seus próprios vocais, e Alex com as guitarras, experimentando e mergulhando no conteúdo de seu coração, e algumas daquelas performances certamente remanesceriam insubstituíveis. Em cada caso “saltamos" adiante, melhorando nossas partes individuais e discutindo as mudanças, correspondendo então ao trabalho que os outros haviam feito. Após tantos anos tocando juntos, nos compreendemos musicalmente de forma intuitiva, e mesmo que tenhamos trabalhado isolados, estávamos trabalhando juntos.

A influência de Paul foi forte nessa fase, pois ele pôde nos ajudar a julgar as performances como “terminadas” ou “ainda não”, e viu as possibilidades que às vezes nos escapavam (incitando “Ghost Rider”, da margem do abandono para sua gloriosa realização, por exemplo). Incentivou também nossas "excentricidades" nas canções que surgiram mais tarde, como “Freeze” e “Peaceble Kingdom”.

É certo que temas comuns tenham surgido, como uma “complexidade vendada” dos elementos e dos arranjos (as partes de bateria para “Freeze” e “Peaceable Kingdom” me fizeram levar dias trabalhando e refinando, por exemplo). O desejo particular de Alex nos levou pra longe do uso dos teclados ou dos solos de guitarra, e Geddy experimentou backing-vocais sobrepostos como texturas alternativas. Na parte das letras, não apareceu nenhum conceito próprio por completo, mas posso delinear algumas fontes interessantes de alguns versos em particular, como Walt Whitman em “Out Of The Cradle”, Thomas Wolfe em “How It Is” (“foot upon the stair, shoulder to the Wheel”) e “Ceiling Unlimited” (o livro de Wolfe, Of Time And The River, além de uma olhada no mapa do Delta Mississippi, sugeriram os versos “winding like an ancient river”). “Ceiling Unlimited” oferece também uma inversão divertida sobre o lamento Vitoriano, de Oscar Wilde, “drink is the curse of the working class”, enquanto Victory, de Joseph Conrad, deu o verso “secret touch on the heart”. “There is never love without pain” ecoou da minha própria experiência e o romance Sister Of My Heart, de Chitra Banerjee Divakaruni, W.H. Auden e Edward Abbey (Black Sun) com certeza influenciaram versos em “Vapor Trail”.

Um artigo na revista “Utne Reader” chamado “What Do Dreams Want?” contribuiu para minhas ideias em “Nocturne” (tal qual o mantra enigmático "the way out is the way in", para “Secret Touch”), e também fiquei impressionado com o enfoque psicológico sobre análise e interpretação de sonhos, “without memory or desire”.

O artista popular Quacre do séc. XIX, Edward Hicks, que pintou não menos do que sessenta versões da mesma cena bíblica, “Peaceable Kingdom” e o baralho de tarô “The Tower” pareceram para mim uma reflexão fria sobre os acontecimentos de 11 de setembro de 2001. Uma série de trabalhos do pintor canadense Paterson Ewen ajudaram a inspirar “Earthshine”, e o título de um romance de A. J. Cronin, The Stars Look Down (que eu tenho que ler ainda), pareceu expressar uma visão apropriada de um universo descuidado.

No universo autossuficiente do nosso trabalho, tudo caminhou tranquilamente, e só quando mergulhamos no estágio final de mixagem que começamos a atolar. Parecia que todos, incluindo Paul, ficaram decepcionados com a qualidade do material, e não poderíamos demorar muito tempo voltando atrás para ouvir as canções inteiras. Depois de algumas tentativas sem sucesso, chamamos um especialista, David Leonard, e ele foi capaz de peneirar várias partes e fazê-las brilhar e estarem como novas, encontrando uma dinâmica e texturas escondidas, mostrando sutilezas da música e dos desempenhos.

E assim vimos subitamente que levamos mais de um ano trabalhando nesse projeto. Não foi porque tivemos quaisquer dificuldades especiais, ou porque foi "super mexido” por muitos dos takes finais das músicas que haviam sido capturadas como novas e espontâneas, mais do que tinham sido no passado. Longe da ideia de que foram mal feitas ou repetitivas, elas só tinham sido tocadas dessa maneira uma vez. A diferença foi que desta vez, ao invés de trabalhar para programações e prazos, continuamos simplesmente cuidando das letras e da gravação até que sentíssemos que o leque de músicas estivesse completo. (Algum sábio uma vez disse, “nenhum trabalho de arte é terminado pra sempre, ele só é abandonado”).

Enquanto colocávamos muito tempo nesse projeto e cuidávamos de todos os pequenos detalhes do conteúdo e performances das músicas, não demos nenhuma atenção para suas durações, e aí que começamos a nos preocupar se todas as treze músicas caberiam em um mesmo CD, que só suporta 74 minutos. Houve alguma conversa de segurar algumas músicas para uma coletânea ou algo parecido, mas o Rush nunca havia deixado qualquer “faixa não lançada anteriormente” para que ninguém comercializasse, e não estávamos a ponto de começar a deixar agora. Todas estas canções foram feitas com muito tempo e esforço, e nós simplesmente não poderíamos imaginar deixar alguma delas para trás. Felizmente elas ocuparam 67 minutos, e fomos poupados de escolhas dolorosas.

Havia o título do álbum que nunca foi uma decisão fácil. Um tema às vezes aparece nas canções do álbum, sugerindo um título, como Counterparts ou Power Windows; outras vezes uma canção em particular se mostra emblemática, como "Test For Echo" ou "Roll The Bones”. Dessa vez nenhum tema apareceu, assim fomos com o título de música que achamos melhor, “Vapor Trail”, e a colocamos no plural nos referindo a todas as músicas. Depois disso fui trabalhar em ideias de capa com nosso diretor de arte de longa data, Hugh Syme.

O último grande desafio que enfrentamos, como sempre, era a ordem das canções, e até o último minuto discutimos muito sobre o assunto. Entretanto, nunca tivemos dúvidas sobre a música que abriria o álbum, porque "One Little Victory" traz um anúncio sem querer: "Eles estão de vo-o-o-olta!”

Sabendo que nossa música não é nada se não simples características individuais, e não só para satisfazer o "gosto popular", imaginamos também slogans publicitários ao longo dos textos como, "Se você os odiava antes, agora você os odiará de verdade!” Ou, "E agora mais de tudo que você sempre odiou no Rush!"

Porém, naturalmente, como todos, esperamos que as pessoas apreciem nosso trabalho, e que nosso entusiasmo, energia e amor compartilhados cheguem por si só ao ouvinte. Quando você se põe no fogo e aponta para o céu, você espera deixar para trás algumas faíscas do calor e luz.

Como um rastro de vapor.